Wednesday, August 29, 2007

 
Para o José Luís Ferreira
"
Colho um cacho de uvas
da videira densa.
Bago a bago as como.
Quando é que isto foi?
Há anos que ando
distante das vinhas.
As uvas, agora,
compro-as na cidade.
Errei o caminho.
Sou eu o errado.
"

Armindo Rodrigues, Quadrante Solar, 1984, IN-CM

Sunday, August 26, 2007

 
Para a Alex
Para a Papu

" AMIGO

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra "amigo".

"Amigo" é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

"Amigo" (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!

"Amigo" é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

"Amigo" é a solidão derrotada.

"Amigo" é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O'Neill, in "Poesias Completas 1951/1983", IN-CM, 1984

Thursday, August 23, 2007

 
Para o Daniel Abrunheiro
Para o Manuel Barata

O poema cresce na natureza como as pedras crescem na montanha:
alado(as), estéril(eis) e nu(as). Um cão vagueia na tarde bem perto
do lírio lilás e verde. Uma mulher irrompe na linha do horizonte.
O poeta fala de coisas simples: quiasmos, sílabas toantes, redondilhas,
assonâncias, rimas ricas, pobres gentes, águas formosas, a lírica mais
tradicional: as guerras de todos os generais assassinos, estados unidos e
companhia ilimitada, para toda a eternidade no maior de todos os
infernos, incluindo aqui, reverentemente e obrigado, o do Sr. Dante.
O poeta volta a falar de coisas simples (morfosintaxe de frase muito
elaborada): o peso de uma ausência doméstica e erudita.
Há algures na paisagem um rafeiro sábio: rondou inteligentemente
a Faculdade de Letras de Lisboa e mijou-lhe nos alicerces!

(J.A.R.)

Sunday, August 19, 2007

 
"Ouvimos dizer: Não queres continuar
a trabalhar connosco


1.

Ouvimos dizer: Não queres continuar a trabalhar connosco.
Estás arrasado. Já não podes andar de cá para lá.
Estás muito cansado. Já não és capaz de aprender.
Estás liquidado.
Não se pode exigir de ti que faças mais.

Pois fica sabendo:
Nós exigimo-lo.

Se estiveres cansado e adormecido
Ninguém te acordará nem dirá:
Levanta-te, está aqui a comida.
Porque é que a comida havia de estar ali?
Se não podes andar de cá para lá
Ficarás estendido. Ninguém
te irá buscar e dizer:
Houve uma revolução. As fábricas
esperam por ti.
Porque é que havia de haver uma revolução?
Quando estiveres morto, virão enterrar-te
Quer tu sejas ou não culpado da tua morte.

Tu dizes: Que já lutaste muito tempo. Que já não podes lutar mais.

Pois ouve:
Quer tu tenhas culpa ou não:
Se já não podes lutar mais, serás destruído.

2.

Dizes tu: Que esperaste muito tempo. Que já não podes ter esperanças.
Que esperavas tu?
Que a luta fosse fácil?

Não é esse o caso:
A nossa situação é pior do que tu julgavas.

É assim:
Se não levarmos a cabo o sobre-humano
Estamos perdidos.
Se não pudermos fazer o que ninguém de nós pode exigir
Afundar-nos-emos.

Os nossos inimigos só esperam
Que nós nos cansemos.

Quando a luta é mais encarniçada
É que os lutadores estão mais cansados.
Os lutadores que estão cansados demais, perdem a batalha."

Bertolt Brecht, versão portuguesa de Paulo Quintela, in "Vértice" nº. 382/383

Thursday, August 16, 2007

 
"
Não sou grande espingarda na alegria
e quanto à vida estamos conversados:
no tempo em que de amor viver soía
soía eu em Angola com os soldados.

Depois andei aí por outros lados
a espiar-te de longe e não sabia
que o tempo em que de amor viver soía
eram minutos poucos e contados.

Tinhas pescoço alto: não tens nada;
uns anéis no caixão em Abrigada
o restolhar do vento pela serra.

Ao tempo que isto foi: não faz sentido
tentar ouvir-te, querer falar contigo
como se houvesse sílabas de terra.
"
(António Lobo Antunes)

Thursday, August 09, 2007

 
Poderia falar muito simplesmente de um pássaro voador
das asas de Ícaro subindo sempre mais alto da (in)finita
(im)paciência dos amantes do desespero acumulado nos
olhos da multidão das chamas consumindo a floresta mas
não falarei disso agora, um estranho silêncio invade as
águas do mar.
Não esperes piedade dos carrascos! O massacre impiedoso
dos animais é o sinal do trinufo dos homens-máquina!

(J.A.R.)

Sunday, August 05, 2007

 
"
ADIAMENTO

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é dia de planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e práctico
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim talvez só depois de amanhã...


O porvir...
Sim o porvir...
"
Fernando Pessoa, in "Ficções do Interlúdio 1914-1935", Assírio e Alvim,
edição Fernando Cabral Martins, Maio 1998


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