Thursday, July 20, 2006

 
..........51

Se te cruzares comigo recorda um camião ao longo das estradas a caminho de Lisboa-Bruxelas, Bruxelas-Lisboa, nunca dei pelo pneu avariado, o estrondo foi enorme, fez lume em contacto com o asfalto, apenas me recordo que junto às bombas de gasolina a discoteca tinha meninas e por lá me perdi um ror de vezes, a patroa que me desculpe. Recordarei ainda e sempre aquela tarde em que galgávamos auto-estradas e nem uma nuvem no horizonte, tinha a certeza de te encontrar comigo vigiando a lua cheia sem outra intenção que não fosse o poder mágico desses obscuros dias.

(J.A.R.)

 
..........50

Só isso conta no relógio do tempo, as horas pararam há muito e não será por mim que ele voltará a funcionar.

Nunca dei pelo mar nas minhas idas e vindas, apenas um terrível frio me recordava a proximidade das águas.

Quanto ao álcool e à droga atenção às consequências, é mau conduzir nessas condições, foges sem saber porquê?

(J.A.R.)

 
..........49

De tudo o que vi, e estou cheio de imagens, o pior foi o sangue na estrada, milhares de animais sacrificados por condutores sem escrúpulos que tanto poderiam ter feito para o evitar e preferiram ver jorrar sangue às golfadas, tudo junto dava um rio de horrores, não pregues o olhar aí, vira a negra página da memória, guarda alguma coisa para outro dia, não consigo libertar-me desse teu ar de tragédia e, confesso, assim me afasto de ti, talvez germine entretanto uma má consciência, talvez contrabando, o que falta não sei bem, viajo com tudo legalizado, nada de carne podre nem de febre aftosa, o pior é que a peste suína não tem subsídio, e a música clássica?

(J.A.R.)

Tuesday, July 18, 2006

 
..........48

Isto não está tudo seguro e nunca se sabe quando nos vão mandar parar, a solidão é o pior, um homem fala com as árvores, o outro ou está a dormir, ou a comer, ou a assobiar, está um gajo sempre sem dizer nada, e eu que tanto gosto de ouvir canto gregoriano no silêncio dos claustros, música celestial, mas já não é possível ver o espectáculo, também gosto de ler, mas não podia segurar o camião com uma mão e ler com a outra.

(J.A.R.)

Monday, July 17, 2006

 
..........47

Assumirei a escrita como o camionista de Lisboa-Bruxelas, Bruxelas-Lisboa, apenas o que mereço pelo meio, o banho e a mulher amada, o sentido da urgência e o sinal de partida. Só existe uma estrada? Embora nem sequer penses em parar, não há tempo, e a certeza na utilidade do esforço é um sentido para tudo, poderás imaginar os perigos desta viagem, quantas guinadas através do sonho e da memória, as curvas e a forma da paisagem, a correria louca às voltas com o destino, se gostasses de mim talvez nem tivesses aqui chegado, um camião é sempre um camião, a patroa está à espera, o pior são os polícias ao longo dos caminhos, que não nos largam a braguilha, poderás ver aí um sinal dos tempos.

(J.A.R.)

 
..........46

Se passeares pelo cais notarás o ar simpático dos marinheiros gregos. Está pronto o bilhete para a viagem à Grécia que nos prometemos. Lembras-te da ilha que queríamos visitar? Creta, Corfu, não recordo bem, sei apenas que por lá passaram alguns dos que mais amo, amargos limões, nem sei agora se conseguiria sobreviver a essa mirífica imagem, creio que tudo isto não passa de um sonho, ainda por cima escandalosamente vivo e actual.

(J.A.R.)

 
..........45

Num cenário de palmeiras bravias
desceste pacatamente a Avenida
em direcção ao bar antigo
duas ou três mulheres executavam mecânicamente
a dança do ventre em Bagdad.


Esqueceste o Tigre e o Eufrates
distraído com a estátua de Ali Babá e dos quarenta ladrões
espreitando na encruzilhada.


Que incrível história milenária
enchia as quentes noites
da tua passagem pelo Oriente
a caminho de Ctesifon
onde árabes e persas lutam há milhares de anos.

(J.A.R.)

 
..........44

Atenção maestro, há um filho da mãe que deseja o tom, o sinal do recomeço, o princípio do verbo a caminho dos séculos pelos séculos, amén. Aspiro o odor do teu corpo contemplando as lamacentas águas deste grande rio Eufrates em dia de sol sob o olhar escaldante de Nabucodonosor e esmagado pelo incrível peso do tempo nos corredores de barro vermelho desta bíblica Babilónia.

(J.A.R.)

Saturday, July 15, 2006

 
..........43

Andava à chuva e ao vento e recordou-se subitamente da dor antiga. Acocorado e tenso levantou os braços para os céus e toda a montanha descobriu o seu segredo: afinal os rios correm para o mar. Mergulhou na tarde dentro das horas mortas e nem rasto da serpente dourada, quem habita o silêncio dos dias? O sal marinho embranquecera. Ele partiu mais rápido que nunca. Até onde o conduzirá a tempestade?

(J.A.R.)

 
..........42

Havia um riacho na noite, a linda noite em que partiste, não devias ir com esse modo lesto e pesaroso, os astros nunca dão a última palavra. Vem comigo ver a lua, ainda há tempo para colher amoras no silvado.

(J.A.R.)

 
..........41

Um longínquo azul de mar, a ténue brisa, as magnólias e as buganvíleas em flor, um intenso odor a maresia perturbando-te os sentidos. Que queres de mim, vagabundo em busca da manhã? Um grande amor pela água e pelo fogo eis o que viaja comigo para sempre.

(J.A.R.)

Friday, July 14, 2006

 
..........40

Na situação actual da engenharia genética tudo há a esperar até mesmo o cansaço, ou a noviade definitiva. Reconstruir uma parte de nós com saibro e cimento para fortalecer as paredes da memória é agora o único fito. Novos tempos pois. Talvez a dor consuma finalmente os seus dias de glória. Distribuiremos depois o silêncio necessário para que todos possam ressuscitar purificados, branco é, galinha o pôs, disse o supremo sacerdote.

(J.A.R.)

 
..........39

A custo sairás deste pesadelo, a atracção da mulher amada, Le Clézio dizendo que a literatura é uma medicina e isso é a tua sorte, nunca estiveste na virtude, no meio, recordas nítida a queda de um anjo do altar abaixo? O padre à rasca, a fugir delas, tu à procura de deus pelos cantos, cheirava a cera e a incenso, o sacrário violado, seriam castigados pela certa, as beatas já sem emprego,tão bem falava o pregador, notaste o silêncio de todos, os olhos dos crentes em maré de fé, esperança e caridade, desfaço-vos à porrada seus incrédulos, o inferno é o vosso destino, terríveis castigos, a mulher do próximo e o nono mandamento, não comas carne sem tirar a bula, o maior perigo é às sextas-feiras e a pior de todas é a sexta-feira santa, havia ainda as cinzas para complicar tudo, vogarão no mar, espero.

(J.A.R.)

Wednesday, July 12, 2006

 
...........38


Para a Papu

Desejaria esquecer um ténue carpir de enigmáticas mágoas, as águas profundas desse rio antigo deslizando rente às alamedas nesses dias fugazes com a neblina londrina junto ao Tamisa, as corças em busca da luz, uma estrela fugidia a sós com o silêncio, talvez o correr do cordeiro nos verdes prados deste Inverno soalheiro, quem te trará novas dos barcos encalhados? Distraída sereia em maré de amar amor sempre à espera daquele pequeno polvo rente às rochas, não vejas nisso apenas o mar, o teu doce mar, o sol amargo deste amigo perdido no vasto horizonte, triste como todos os poetas, mas tão cheio de luar para te oferecer.

(J.A.R.)

Sunday, July 09, 2006

 
..........37

Caminho fielmente entre os eucaliptos e absorvo com sofreguidão o ar desta manhã de chuva com a fermentação do estrume e das folhas caídas à beira da estrada tentando decifrar uma vez mais e sempre o insustentável significado da vida e da morte.

(J.A.R.)

 
..........36

Entre as giestas e os mares do sul suspendes o tempo e o silêncio

alguma vez a tua voz ecoará na floresta de abetos se te instalares à espera da lua cheia

na tarde silenciosa viste um bando de pássaros. Um, um único pássaro ousou afrontar o vento: que coisa espantosa e memorável

(J.A.R.)

 
..........35

Não temos o espaço verde e o azul do mar, mas não me cansarei mais a ressuscitar velhas dores, ainda para mais Napoleão disse para a sua tropa: do alto destas pirâmides quarenta séculos vos contemplam, ou qualquer coisa do género, só me mereces banalidades, as de base e o absinto para a dor ó Alberto Caeiro a verdade é que a literatura já deu o que tinha a dar, há pouco para oferecer além da pureza, mas isso me basta agora, só não posso aceitar a mentira, não te pedi nada, ou esqueceste depressa?

(J.A.R.)

 
..........34

Arruma os discos com cuidado, a Carole King em especial, passo logo para jantar, o dia está bastante feio e uma fogueira apetece sempre, mas não te rias assim, não faças esse ar de quem tem sempre razão, não te queixes pois ainda agora cantavas o ar puríssimo e as delícias deste Inverno, vou deixar longos espaços em branco onde os poemas aguardarão o seu tempo.

(J.A.R.)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Web Page Counters