Saturday, February 28, 2009

 
" Trata-se de um pequeno território dum mundo
que certamente não existe.
A força é uma catedral entre laranjais.
Escrevam sobre isto, dizem. E nós escrevemos
para disfarçar uma impossibilidade.
Depois chegam as coisas que andam connosco
pelos caminhos e os que são tristes sorriem e os
alegres choram. Assim se cumpre a nossa inclinação
para o que é magnífico.
Somos frios, às vezes somos também os que sabem
os nomes mais serenos: água, fogo, ternura.
Esta noite podia ser um século de força na nossa
vida. Será numa noite destas que acenderemos os
archotes aos amigos que partem.
Vão sós.
É assim o silêncio.
Então aprendemos a dar importância à nossa primeira
descoberta e o mundo inteiro estabelecerá que se deve
falar disto ou daquilo.
E numa noite destas procuraremos pelas ruas a palavra
porque partimos e chegamos e os nossos braços buscarão
a distância.
Falar-se-á dela sempre que se necessitar de um objecto
batido pela luz.
Uns dirão: é o sol e o mar. São algas e bichos.
Outros: é um nome.
Será uma coisa destas- digo eu e paro de escrever, porque
escrever pesa-me imenso."

Mário-Rui N. Cordeiro, in CENTRAL PARK, livro inédito.


Tuesday, February 24, 2009

 
"Ouvia os actores em baixo, trabalhando a sua penosa ciência
de divertirem as pessoas.
O tilintar das ferramentas.
A obra.
A oficina.
As tradições que era preciso respeitar.
Esqueci tudo isso. Caminhei. Perdia-me e encontrava-me.
Foi sempre assim desde a fundação dos templos. De repente
começamos a saber. Sabemos tudo e corremos em todas as
direcções. Estabelecemos um equilíbrio. Dispomos as histórias,
os lugares e os sonhos numa curiosa ordem decrescente, cheia
de senso e ironia.
Pegamos num livro e lemos, estabelecendo assim a confusão,
muitas relações e um número infindável de afinidades.
Pensamos- nada nos salvará.
Além há a poesia- a arte de criar o excesso. Imaginem: no meio
de muito ódio as pessoas amam-se. Assim: duas pessoas amam-se.
Isto pode ser o começo duma revoluçãozinha, meus senhores.
Sobretudo é preciso não descuidar os factores lugar e tempo,
enchê-los de sabedoria e premeditação até cairmos doentes.
Não procurar ser feliz, nem ter prestígio.
No meio de muito ódio e muita indiferença, duas pessoas
amam-se, não se esqueçam.
Uma diz:- esta noite sonhei que estavas doente, na cama e eu ia
ver-te.
A partir daqui pode caminhar-se para a salvação de tudo isto. Para
o aproveitar de todo o tempo possível.
É assim: duas pessoas encontram-se. Ambas têm uma história que
querem contar, uma, portanto, grande analogia. Uma aglomeração
de pequenas histórias e mestrias.
Há histórias que se desenvolvem em círculos. Não há, no entanto,
palavras para as contar e a procura delas dá origem ao estilo.
E o estilo não existe."

Mário-Rui N. Cordeiro, in CENTRAL PARK, livro inédito

Saturday, February 21, 2009

 
"As palavras são coisas que rodam contra o tempo,
que se dobram e mergulham nas águas dum sono universal.
São pedras que se atiram contra as trevas.
O povo gosta disto.
É aqui que tu morres. Transformas-te cada vez mais nessa
grande e íngreme luz que se precipita pela areia fora e detém
as ondas.
Em abril pergunto:- onde estás?
Sei que a teu lado crescem eucaliptos e trepadeiras e que a tua
cor é o branco.
Por isso eu pergunto:- onde morres? Pois eu sei que estas pedras
são mortos muito antigos e procuro-te.
Em maio tu morres e em dezembro és um som branco e grandioso
que, apesar de tudo, não conheço.

Via-te descer as montanhas e não sabia que era a mim que
procuravas.
Via-te dominando o tempo e as coisas com uma expressão infinita,
quando nas colinas mais altas um fogo antigo se acendia.
Era, dir-se-ia, a hora do regresso dos ventos mortais e, na orla de
uma antiga e profunda claridade, à beira das fronteiras batidas
pela súbita invernia, aí, no recôndito de uma grande e universal
razão, se estendesse os olhos poderia ver os campos de oliveiras
e mais ao fundo a areia assinalando um oceano, ou um deserto.
Aí o passado e o futuro se bifurcam.
Via-te olhar a arquitectura dos promontórios.
Tu partias para todas as direcções em demanda da última e
inebriada razão.
Talvez procurasses a morte, ou o círculo onde confluem todos os
rios, todos os lugares, terras e perfumes. Onde o amor, a morte
e a vida, se bifurcam- esse lugar único e último, que depois da
morte nos rodeia."

Mário Rui N. Cordeiro, in CENTRAL PARK, livro inédito

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