Wednesday, May 30, 2007

 
ah o rio do esquecimento é agora o destino possível há
mais rios mas estas águas murmuram segredos as trevas
inundaram a terra e cobriram-na com o seu manto
mortífero salvaram-se as crianças no alto mar e um
jovem rei foi assim obrigado a cumprir um destino
colectivo: velhos conselheiros dementes invocaram o
campo da desonra e um povo incauto ouviu cantar as
sereias assim se perdem as ocasiões de construir um
país dizem agora que a prosperidade é possível e talvez
até a lua

(J.A.R.)

Tuesday, May 29, 2007

 
Afonso pacatamente recolhido à sombra de uma
árvore e rodeado pela massa enorme e disforme
dos pavilhões do hospital meditava nas grandezas
e misérias de Lisboa, essa bem-amada mal-amada
cidade destas suas horas para esquecer. E dizia de
si para si: que grande aglomerado de betão e estupidez.
Alguém lhe havia dito um dia que a cidade era um
ninho de víboras e ratazanas e bem vistas as coisas
que é uma cidade senão um ninho de víboras e
ratazanas? Nada disso, não podes sair deste local
sem licença do médico. Qual doente, qual porra?
Virá um catarpilar numa manhã de modorra e paz
e arrasará os muros deste hospital. É nestas alturas
que os mais nobres sentimentos afloram ao coração
das pessoas. Passam, olham e dizem: coitado! E o
Afonso sempre igual a si mesmo resmunga: qual
coitado, qual caralho!...
Ali sentado dava voltas à imaginação para ocupar
o espírito com coisas mais alegres: o seu campo, o
rio, as formosas águas, a sede dos pinheiros e
eucaliptos, a música da floresta, o canto irrepetível
do rouxinol, os melros, as pegas, as corujas que
habitavam o sótão da sua velha casa, a paz, o silêncio.
Tudo aquilo que lhe haviam roubado e tudo isso
acontecera porque deram ouvidos ao padre, à velha
Felismina e ao doente do médico, se já se viu coisa
igual, sopra agora uma ligeira brisa, recorda-se dos
pomares e das hortas que estão a dois passos da sua
casa e interroga-se: será que este é um ano de grande
abundância? A natureza é mãe, dissera-lhe o único
amigo que aceitara em sua casa, garrafão de cinco
litros de tinto, um casqueiro e um chouriço para
matar a malvada. A natureza às vezes também é
madrasta, replicara o Afonso, agora mais dado à
análise dos fenómenos naturais, tinha até um livro
lá em casa, um Almanaque antigo, cheio de truques
e sabedorias. Andava o médico a passear quando
o Afonso o interpelou à queima-roupa e lhe disse:
quero ir embora imediatamente. O médico pensou
já está curado e logo o Afonso lhe atira uma hora
destas qualquer de um qualquer dia vou voltar, de
momento é imperioso que regresse para junto da
floresta, de contrário, os pinheiros e os eucaliptos
correm o risco de morrer à sede. Entenda, doutor,
nada de arredar caminho, não dê ouvidos às suas
enfermeiras nem à velha Felismina, nem ao padre,
nem ao seu colega, gente tresmalhada do redil da
Senhora de Fátima, mande-os foder, deixe-os
cair.
Pensava na flor das oliveiras, nas rosas em botão,
nas ternas raparigas da aldeia, justamente quando
um pássaro poisado naquele solitário ulmeiro se
lembra de cagar para a careca do médico, riu-se o
Afonso daquele despropósito e lembrou-se de todos
os acasos que comandam a vida de um simples
mortal, disse: sempre é melhor uma cagadela de
pássaro do que um míssil ou uma bomba nuclear.
Foi nesse momento privilegiado que o médico
assinou a alta, resolveu convocar a assembleia do
hospital e perante um selecto e silencioso auditório
discorreu àcerca da estranha analogia que o Afonso
estabelecera entre a cagadela de pássaro, um míssil
e a bomba nuclear. A nata da assistência desatou
a bater palmas e ali mesmo ficou decidido erguer
uma estátua à inteligência do Afonso.

(J.A.R.)

Wednesday, May 23, 2007

 
O mar. Os pescadores. Herói de todos os mares, o
Engº. Ferreira de Magalhães. Os filhos. A vida. A
infância. As lutas no seio da família. As rivalidades.
A intriga. Os segredos do mar. O amor e o ódio. As
tempestades. O inverno. O verão. A invasão dos
turistas. Duas inglesas em maré de cio sacodem
as suas angústias nos braços de dois jovens pesca-
dores, nas dunas, próximo da praia abandonada.
O barco que não voltou. As buscas. Os achados no
mar. Os golfinhos que acompanham o barco. Olhos
que imploram a vida contra a desumanidade de
vingadores de causas perdidas. A origem de todas
as dores. A lenta descoberta de cada um dos
personagens. Maria do Mar, mulher do Cu à Vela,
contadora de todas as histórias do mar, à beira
do cais, nas longas esperas abençoadas por Santo
Eufrásio a quem todos juraram mil velas do formato
de um pequenino barco salva-vidas encontrado
à porta da capelinha de Nossa Senhora dos
Navegantes. Acima de tudo, para que conste,
fica a terrível loucura do narrador, sitiado
às portas da cidade, quando no meio de uma praga
de corvos em busca do seu sangue, montou no seu
cavalo branco, o preferido, e nunca mais conseguiu
romper o cerco por manifesto descuido e incapacidade.
Vai agora assimilar a toda a pressa a arte de bem
cavalgar toda a sela enquanto o inimigo dorme
distraído às portas da cidade num trágico
acampamento onde as baionetas reluzem ao sol.
Incomodado pelas explosões da guerra despertou
novamente o narrador e dirigiu-se para o barco
acompanhado pelo Engº. Ferreira de Magalhães,
herói de todos os mares, aquele que trinca vivas
as cabeças das enguias e as enrola à cintura.
Naveguei em quase todas as águas e percorri
vários destinos. De tudo o que vi, o pior foi uma
enorme tempestade que levou a maior parte dos
homens do meu barco. Aguentaram-se ainda
muito tempo sobre as águas, mas quê, os socorros
não vieram. Eu aguentei muitas mais horas em
luta com o mar. Conheço-o bem. Ganhei-lhe
muitas batalhas, mas ninguém pense que é mais
forte do que o mar. Quando está bravo, mete medo,
é de fugir. Quando foi que o Engº. Ferreira de
Magalhães entrou no mar pela primeira vez?
Nem ele sabe, já não se lembra. Em pequenino
andava lá em baixo num pequeno quartinho, bem
embrulhado, enquanto o pai deitava as sortes ao mar.
Depois...ele morreu. Tinha sete anos. Começou logo
a ocupar o seu lugar. Ajudava conforme podia, lá
se ia safando. Caiu à água aos nove anos e lá o foram
buscar, mas nessa altura já conhecia bem a força
do mar.
Nem sei bem porque se queixaram as inglesas no
posto da polícia, disse o Cu à Vela, as gajas nem
sabiam de que terra eram, talvez tenham perdido
o norte, disse com muita sabedoria o Engº. Ferreira
de Magalhães. E rematou com Horácio: os que
atravessam os oceanos, mudam de céus, mas não
de ideias.

(J.A.R.)

Saturday, May 19, 2007

 
Não tentes confundir as circunstâncias, isto foi o pior
de tudo, mas tu continuas teimoso como sempre, à
espera da lua nova e da chuva miudinha nesta tarde
tão tranquila em que lembras alguns amigos que por
lá ficaram: o Alfredo, o Zé dos Reis, o Américo. Com
eles ficou também algo de ti, o cigarro das desfolhadas,
as namoradas em comum, o sabor das primeiras
conspiratas.
O amor à vida reforçou-se e amaldiçoaste a guerra,
todas as guerras, para sempre.

(J.A.R.)

Wednesday, May 16, 2007

 
bem sabemos nós que um rio nos conduz audazes
e ondulantes águas serpenteiam no vale e há mesmo
notícias de um submarino longínquo o preço a
pagar por haver amigos distraídos é grande coitados
tão perto e tão longe da glória ah o sossego necessário
é um caminho para alertar as consciências

Tuesday, May 15, 2007

 
Agradecimento

A partir de ontem, com os acrescentos de hoje, posso então confirmar
que há leitores/as, ou visitantes, ou curiosos/as, a visitarem os textos deste
vosso companheiro de viagem!

Este passo para a "modernidade" só foi possível com o apoio da Alex

http://grau-zero.blogspot.com

Aqui fica o meu muito obrigado, ou como se diz na Beira Baixa, BEM HAJA!

Sunday, May 13, 2007

 
A propósito do meu post anterior, encontrei no blog
da Vivis, que vale a pena ser visitado, pela beleza e
pelo silêncio, http://fazendamarmelo.blogspot.com
um link para o "Correio do Brasil" onde reencontro
um dos meus poetas preferidos, Carlos Drummond
de Andrade:

"Quando for consumido o fruto da última árvore e
envenenado o último rio, o homem descobrirá que
não se come dinheiro."

Friday, May 11, 2007

 
Falavas das raízes. Partir. Regresso às origens. Que bom
seria. Mas é evidente que já sabes pouco do que por lá se
passa, já nem topas a fronha dos putos, com quem se
parece este aqui, e aquele? E o ar da malta no café? Vacanças
em barda e mésons com fenétra, tá bem ó Felismina.
Havia agora no cinema uns lindos olhos de bela mulher em
crise. Tu disseste-lhe: não serei mais um marido na tua vida.
E ela: não serei mais uma esposa na tua vida. E por ali
ficaram à espera de descobrir essa estranha cumplicidade
que dá pelo nome de amor e que ainda ninguém conseguiu
descobrir o que seja. Apenas os poetas por lá andam perto
e mesmo assim, alguns se perdem. Tu mesmo talvez. O que
te consome é um terrível excesso de memória. Havia um
pequeno rio, onde antes os peixes e os barcos se misturavam,
e as tardes eram sempre belas para os namorados, não
perdoarei jamais a destruição, o cheiro nauseabundo,
o princípio da morte.

(J.A.R.)

Saturday, May 05, 2007

 
passeias agora na negra noite e as árvores da floresta
vergadas ao peso do vento ressuscitam velhos
fantasmas falemos destas noites de bruma falemos
do refúgio das palavras especialmente inventadas
para a poesia

(J.A.R.)

Friday, May 04, 2007

 
a chuva miudinha e persistente uns ternos olhos
ameaçando bonança as mais ternas palavras para
vos oferecer ó mulheres amadas tão perto tão
longe bem sei de enormes dores e de ventos
ciclópicos que perturbam as noites de todos os
amantes glória tão perto glória tão longe para
onde corres? Ó mensageiro alado um pássaro
nocturno dir-te-á do rio do esquecimento

(J.A.R.)

 
Vou escrever sempre, mesmo que me doa imenso
e vá fazer alguma ferida ainda maior, mas quem
dará algum valor a isso? O valor do trabalho,
como um cão dócil cumpriste todas as tarefas,
misturaste sémen e sangue em tudo o que fizeste
e o resultado está à vista...

Wednesday, May 02, 2007

 
As notícias que nos chegam do hospital são de molde a
sossegar a boa consciência de todas as almas preocupadas
com os desatinos do Afonso. Por fim, sossegara. Só não
dera mostras de grande arrependimento. Disse-lhes:
esperem pela próxima e verão o trambolhão do médico
de serviço e de todas as enfermeiras que aí ocupam os
tempos menos livres de que há notícia. Uma louca
correria pelos corredores, só de loucos, pensou o Afonso.
Vou sossegar, exigir todo o silêncio a que tenho direito,
nem mais uma palavra direi a esta gente.
Foi neste puro estado de indiferença por tudo o que o
rodeia que o Afonso entrou num mutismo absoluto, qual
palavra, qual carapuça, a língua recolhera e nem pio. Na
aldeia a sorte do Afonso era comentada de frente para
trás e de trás para a frente. Nas traseiras da Igreja
assentara o povo arraial e não havia meio de arredar
pé. Nem a água que chovia copiosamente, bátegas e
bátegas desciam sobre o povoado, o padre sempre a
dizer orações, o povo a repetir todas aquelas santas
palavras e ninguém vira semelhantes acontecimentos.
Tudo gente de trabalho, nos campos e nas fábricas, nos
mares e nos rios, nas florestas e nos descampados, nos
silvedos e nos montes, aí estava o povo sempre de pé,
teso e forte, cumprindo a missão que o destino lhe
traçara, sem queixume, sem uma imprecação aos céus,
com dor e sem glória, mas com uma imensa força
interior, que é para a frente que se deve andar, para
trás mija a burra, lembrou-se a velha Felismina, por
detrás dela havia agora um fogo enorme, um súbito
clarão, para lá se viraram os olhos de todo o povo,
milagre? não podia ser, um povo já martirizado não
pode ligar assim a milagres sem jeito nenhum, é um
fogo a bailar nos céus, até o mar arde assim em certas
horas, um fogo a latejar nas fontes. Afonso conservara
o seu mutismo, um segredo bem guardado, vão chatear
o caralho, que médico estúpido e estas cabronas por
que não me largam a braguilha? Andava para trás e
para a frente, frios e longos corredores ajudavam às
correrias, corriam a trote, só se me arranjarem uns
patins iguais aos da infância, o jardim zoológico, os
animais de estimação, os enjaulados, as cobras, são
maus como as cobras, quem disse que as cobras são
más? Larguem-me da mão, assim pensava, nada
dizia.
No adro era já conhecida a grande notícia: o Afonso
não diz uma palavra e agora tudo se torna mais
complicado. Quem tanto fala, muito erra, estou
calado, já disse, não quero errar, ofereço-vos o
privilégio do erro, foi desta maneira muito curiosa
que Afonso arrumou a questão, niente, nada, nada.
Quem poderá adivinhar o que vai na mente de um
homem que habita o silêncio, quem? nada nem
ninguém jamais conseguirá quebrar o muro das
palavras por dizer, o silêncio habita este vasto
mundo e é agora um privilégio utilizado pelo Afonso
para dar cabo da cabeça do médico, dos enfermeiros,
do padre, da velha Felismina, e de todo aquele imenso
povo que parte agora para a procissão com as imagens
mais santas às costas e que aguarda ansiosamente
pelo tão esperado milagre, se não houver milagre,
dissera o Cu à Vela parto este santo à cachaporra
e nunca mais ninguém me vê dentro da igreja, já
estava desconfiado da esperteza do Afonso, é doido,
qual doido? doidos somos nós que nos fartamos de
trabalhar, é um santo talvez, naquele momento
inenarrável o Afonso dissera para dentro, são todos
uns desgraçados, uns desgraçados que se matam
a trabalhar para nada, para nada...Uns desgraçados
é o que são, a miséria maior de todas por onde
andará?

(J.A.R.)

Tuesday, May 01, 2007

 
fingimos beatitude enquanto um enorme vulcão domina as
entranhas deste povo empoleirado na praça pública a
assistir alegremente à exibição dos carrascos os tiranos
decretaram feriado na cidade o povo tem a pança cheia e
está feliz com o espectáculo nenhuma guerra perturbará
a digestão dos poderosos este é um dado anunciador da
caminhada para o abismo se entretanto um certo saber
não nos disser de lutas de abjectas provocações de
pérfidas traições habitante da floresta mensageiro
distraído de inenarráveis histórias por contar quem nos
dirá dos fracassos? O mais importante é sempre o porvir
melhores são os rios que correm velozes margens seguras
impetuosas águas criaturas em cio abanando a floresta
imponentes garanhões em sofrimento destruindo a doce
pacatez dos verdes prados

(J.A.R.)

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