Tuesday, May 29, 2007

 
Afonso pacatamente recolhido à sombra de uma
árvore e rodeado pela massa enorme e disforme
dos pavilhões do hospital meditava nas grandezas
e misérias de Lisboa, essa bem-amada mal-amada
cidade destas suas horas para esquecer. E dizia de
si para si: que grande aglomerado de betão e estupidez.
Alguém lhe havia dito um dia que a cidade era um
ninho de víboras e ratazanas e bem vistas as coisas
que é uma cidade senão um ninho de víboras e
ratazanas? Nada disso, não podes sair deste local
sem licença do médico. Qual doente, qual porra?
Virá um catarpilar numa manhã de modorra e paz
e arrasará os muros deste hospital. É nestas alturas
que os mais nobres sentimentos afloram ao coração
das pessoas. Passam, olham e dizem: coitado! E o
Afonso sempre igual a si mesmo resmunga: qual
coitado, qual caralho!...
Ali sentado dava voltas à imaginação para ocupar
o espírito com coisas mais alegres: o seu campo, o
rio, as formosas águas, a sede dos pinheiros e
eucaliptos, a música da floresta, o canto irrepetível
do rouxinol, os melros, as pegas, as corujas que
habitavam o sótão da sua velha casa, a paz, o silêncio.
Tudo aquilo que lhe haviam roubado e tudo isso
acontecera porque deram ouvidos ao padre, à velha
Felismina e ao doente do médico, se já se viu coisa
igual, sopra agora uma ligeira brisa, recorda-se dos
pomares e das hortas que estão a dois passos da sua
casa e interroga-se: será que este é um ano de grande
abundância? A natureza é mãe, dissera-lhe o único
amigo que aceitara em sua casa, garrafão de cinco
litros de tinto, um casqueiro e um chouriço para
matar a malvada. A natureza às vezes também é
madrasta, replicara o Afonso, agora mais dado à
análise dos fenómenos naturais, tinha até um livro
lá em casa, um Almanaque antigo, cheio de truques
e sabedorias. Andava o médico a passear quando
o Afonso o interpelou à queima-roupa e lhe disse:
quero ir embora imediatamente. O médico pensou
já está curado e logo o Afonso lhe atira uma hora
destas qualquer de um qualquer dia vou voltar, de
momento é imperioso que regresse para junto da
floresta, de contrário, os pinheiros e os eucaliptos
correm o risco de morrer à sede. Entenda, doutor,
nada de arredar caminho, não dê ouvidos às suas
enfermeiras nem à velha Felismina, nem ao padre,
nem ao seu colega, gente tresmalhada do redil da
Senhora de Fátima, mande-os foder, deixe-os
cair.
Pensava na flor das oliveiras, nas rosas em botão,
nas ternas raparigas da aldeia, justamente quando
um pássaro poisado naquele solitário ulmeiro se
lembra de cagar para a careca do médico, riu-se o
Afonso daquele despropósito e lembrou-se de todos
os acasos que comandam a vida de um simples
mortal, disse: sempre é melhor uma cagadela de
pássaro do que um míssil ou uma bomba nuclear.
Foi nesse momento privilegiado que o médico
assinou a alta, resolveu convocar a assembleia do
hospital e perante um selecto e silencioso auditório
discorreu àcerca da estranha analogia que o Afonso
estabelecera entre a cagadela de pássaro, um míssil
e a bomba nuclear. A nata da assistência desatou
a bater palmas e ali mesmo ficou decidido erguer
uma estátua à inteligência do Afonso.

(J.A.R.)

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