Friday, November 27, 2009

 
"AVISO DE PORTA DE LIVRARIA

Não leiam delicados este livro,
sobretudo os heróis do palavrão doméstico,
as ninfas machas, as vestais do puro,
os que andam aos pulinhos num pé só,
com as duas castas mãos uma atrás e outra adiante,
enquanto com a terceira vão tapando a boca
dos que andam com dois pés sem medo das palavras.

E quem de amor não sabe fuja dele:
qualquer amor desde o da carne àquele
que só de si se move, não movido
de prémio vil, mas alto e quase eterno.
De amor e de poesia e de ter pátria
aqui se trata: que a ralé não passe
este limiar sagrado e não se atreva
a encher de ratos este espaço livre
onde se morre em dignidade humana
a dor de haver nascido em Portugal
sem mais remédio que trazê-lo n'alma."

25/1/1972

Jorge de Sena, in POESIA III, Edições 70,
Lisboa, 1989

Sunday, November 08, 2009

 
" O DIFÍCIL COMÉRCIO DA ARTE DE INQUIETAR


A poesia comprometida, herança nossa de um certo realismo francês- engajamento reeditado pelo Sartre, o qual foi responsável, de certa forma (graças ao Maio/68) pelo enquadramento ideológico de uma suposta 3ª. Geração neo-realista-. ainda é possível hoje em Portugal?
Esta democracia atraiçoa os ideais da Revolução, escreve Engelmayer, referindo-se a Abril de 74 e à poesia de José Afonso. Eduardo Pitta, em texto crítico publicado na revista LER, corrobora esta afirmação, embora por ínvios caminhos, ao dizer-nos que as coordenadas da actual lírica portuguesa vagueiam longe das preocupações sociais, que há outras urgências ideológicas e estéticas (que acompanha a crescente e redutora globalização liberal) e que os cultores da poesia que reflecte o pulsar do seu tempo, de comunhão com a vida, a poesia que se inquieta e indigna, estarão, talvez irremediavelmente, condenados ao ostracismo. Aconteceu com Ary dos Santos porque, segundo Pitta, as irreverências, em país manso, pagam-se caras e só não acontece, por enquanto com Manuel Alegre graças aos deuses do poder que lhe vão concedendo protecção e algum protagonismo mediático. Portanto, a geração que andou pelas guerras coloniais e pelos maios parisienses, que construiu uma poética que expressava os medos e as inquietações do seu tempo, que contribuiu, com a palavra certeira e revolta, para o zarpar da pata fascista, permitindo, generosamente, que a libertinagem pós-modernista se instalasse dominadora, segregacionista e exultante, que se cuide e emale a trouxa. Os cânones da actual vaga, dos Magalhães aos Mexia, são totalitários e quem não alinhar está fora da borda sem remisso nem cântico final. Longe parecem ir os tempos em que José Gomes Ferreira afirmava, contundente, que os poetas só têm uma missão:cantarem o Presente. Amarem o Presente. Insultarem o Presente. Viverem as paixões, as lutas, os amores, a porcaria, as molezas, as incoerências, o nada e o futuro do Presente.
Vem isto a propósito da poesia de José Antunes Ribeiro a qual, embora enquadrando-se, ideologicamente, nos referentes de uma poesia de resistência e de combate, também se sente atraída pelo discurso de um certo artificialismo verbal, pelo jogo revelador das palavras, inscrito, por exemplo, nos poemas/prosa de Rio do Esquecimento.Estes poemas sinalizam alguns dos códigos da actualidade poética, num concerto que passa por Echevarría, Ruy Belo e Al Berto. O certo é que a poesia de José Antunes Ribeiro, embora andando em voo rasante e salutar por diversas correntes literárias, sendo igualmente uma poesia de denúncia e em
sintonia com o seu/nosso tempo, não expressa as frustrações de impotência da arte perante as injustiças do mundo, não se demite, não alinha o verbo pelas diversas capelinhas do pronto- a- usar de eco garantido nas gazetas de opinião em moda: é uma poética livre na análise, na forma (feita de várias e assumidas influências, porque o autor não está só neste combate nem descobriu a pólvora), certeira e inesperada quando investe sobre tudo quanto magoa o poeta e contribui para tornar abjecta a condição humana, seja quando nos fala das atrocidades da guerra, quer na desmontagem- pelo sarcasmo, pela acutilância- de certos mitos lusos, e mais veemente é esta postura quando, no sarcasmo demolidor de alguns versos, deparamos com o mais fino e elaborado dos códigos dadaistas.
Este Todos os Livros, Diz ele, no qual José Antunes Ribeiro reúne toda a obra poética publicada: Mar a Mar; O Difícil Comércio das Palavras; Fragmento e Enigma e Rio do Esquecimento, é por esse facto, necessariamente, um livro de muitos livros feito. Irregular, como todas as antologias. E ainda bem. Penso que o autor o não queria monótono e monocórdico, certinho, arrumado, coerente. Roland Barthes, diz-nos que um autor deve ser o mais ecléctico possível quando se põe à escrita e que na poesia, espaço privilegiado de todas as experiências, tudo desagua. Assim o entendeu, e bem, quanto a mim, José Antunes Ribeiro, ao editar um livro polifónico, atravessado por percursos e pulsões diversas. E assim, temos sonetos do mais puro virtuosismo linguístico e estético, alguns impensáveis para os puristas vigilantes que entendem o soneto género museológico. Atente-se, por exemplo, neste: Em breve saberemos notícias/ das guerras todas o imenso cemitério/tornará inevitável a doce paz/só o silêncio habitará o espaço/talvez uma alga uma amiba/possa sobreviver no fundo/da ravina ou então um líquen/ou um pequenino musgo/E no entanto é preciso cantar/e no entanto nada mais é preciso/senão derrotar de vez a cupidez/e o medo deste terror universal/que se passeia impune nos céus/ a cupidez a estupidez a cupidez soneto ferindo as harmonias, não hesitando o autor em utilizar palavras incomuns ao género, (amiba, cupidez, estupidez) palavras que se repetem até nos doerem (cupidez), até impressivamente nos tocarem.
Poesia igualmente de memórias: dos amigos, da família, da guerra- e de afectos, muitos, das solidariedades, das lutas, dos amores. Retenho, por exemplo, os três belíssimos poemas que o autor dedica ao pai Fitou as próprias mãos e descobriu a infinita capacidade da caneta rasgando traços no papel em branco. (...) os fantasmas rondavam a casa na infância e foi necessário acordar um pai bom e generoso para pôr fim àquele pesadelo. (...) Como não hei-de seguir as tuas pisadas se uma pequenina luz brilha e já não há lugar para o medo? (...) Podes crer, Pai: não mais esquecerei o cheiro da terra e o sabor daquela água que bebemos juntos no vale, após uma longa caminhada pelos montes. Recordarei sempre a leveza da tua mão poisada nos meus ombros. Ou a sentida dedicatória a José Afonso no livro O Difícil Comércio das Palavras: Percebo muito bem esse tão velho receio das estátuas e medalhas, é assim o tempo que vivemos, às vezes amigos em barda e outras vezes apenas a clara evidência da dor e do silêncio nalguns momentos em que um estranho ruído saído do mar evoca a festa da nossa fraternidade. Comércio difícil, todos o sabemos, o das palavras, sobretudo quando inquietam, quando dilaceram, quando rasgam consciências, quando insultam o Presente. E deste comércio José Antunes Ribeiro conhece, na sua dupla condição, quer enquanto autor (e por isso dado também à escrita de textos que reflectem essa particularidade, das angústias e perplexidades de quem se dedica à tarefa de urdir palavras); quer enquanto editor, na tarefa ingente de vender livros em país de iliteracia militante e garbosa.
O lirismo, um lirismo distanciador e lúcido, um lirismo despojado do qual os arrebatamentos de um romantismo serôdio estão ausentes- penso tratar-se de uma forma peculiar de abordar o amor- um lirismo por vezes cáustico, irónico, de uma desconcertante simplicidade de processos: O comprimido tinha bom aspecto, engole-se com água, leite, sumos ou vinho tinto. És louco, disse ela. Deitou-a então toda nua no barco e partiram em direcção à Estrela Polar. Acordaram tarde.
Ao ler, pela primeira vez, os textos do livro Rio do Esquecimento, incluído neste "Todos os Livros" (querendo dizer-nos que todos eles são pronuncio de livros a haver) me ficara a sensação de que aquilo que José Antunes Ribeiro escrevera poderia, igualmente, ter sido escrito por mim, tão próximo me sentia na sintaxe, no verbo, nas formas de dizer a vida- tudo aquilo era demasiado meu para ser dele, como escreveu Raul de Carvalho, referindo-se a Álvaro de Campos. E isto, porquê? Por que a poesia de José Antunes Ribeiro nos está próxima, é de geração pelo que nela perpassa de generoso e solidário. Estivemos em semelhantes barricadas, bebemos do mesmo vinho, sofremos dores próximas, desapegos, frustrações, alegrias. É por isso que me atrevo a afirmar, que este livro de todos os livros feito- como de resto, o afirmou Fernando Dacosta na sessão de lançamento- confirma uma das vozes mais perturbantes e lúcidas da poesia portuguesa contemporânea. Só um poeta atento ao seu tempo, vivendo as lutas e as paixões do seu tempo, poderia dar testemunho tão inquietante e mordaz das pequenas humilhações quotidianas, as quais todos, de uma forma ou de outra, sofremos neste país de inquisidores costumes, onde o brando é eufemismo, como o texto À MANEIRA DE POSFÁCIO OU COMO AS VIAGENS POR VEZES ARRASTAM CONSIGO TERRÍVEIS TRAGÉDIAS, largamente comprova.
A poética de J.A.Ribeiro, é uma poética feliz, no sentido que aponta para a felicidade, para a utopia de manter, apesar dos pesares, vivos os signos da esperança. Uma poesia assim, a um tempo lírica e sagaz, sensível e arguta, demolidora mas também a fazer-se ao rés das lágrimas, das emoções possíveis, no cerne das palavras- uma poesia que anuncia valores que não estão de todo em moda, que não dá dividendos imediatos nem mobiliza lobis da crítica instalada-. poesia contida e segura na mestria de manipular o verbo, distanciadora sempre, como se o autor se negasse à entrega, pairando num jogo sedutor de revelações e ocultações brechtiano, ou seja, uma poesia só possível de acontecer quando se ama o Presente e se sabe Cantá-lo. Deixando testemunhos do nosso tempo, para o futuro."

Domingos Lobo in DESCONSTRUTOR DE NEBLINAS, Edições Cosmos, 2004

Sunday, November 01, 2009

 


 


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