Thursday, January 01, 2009

 
" Há coisas que jamais se esquecem porque são coisas difíceis.
Imaginemos uma coisa difícil-por exemplo-uma mulher com
asas de chuva branca sentada diante duma janela onde as paisagens batem profundamente.
Uma mulher que canta.
Imaginemos também um vagabundo.
Um vagabundo atravessa um rio sem perguntar:- que nome tem este rio?
Para onde quer ele o nome do rio?
Um dia numa cidade distante, no intervalo de duas cervejas, quando falar
do rio, ele não dirá:- uma vez atravessei o rio tal a nado. Ele dirá somente e é, afinal, quanto basta:- atravessei um rio a nado. Ou então não diz nada e é, certamente, um vagabundo impregnado duma timidez estúpida, incapaz de aterrorizar as pessoas com as suas histórias.
Um vagabundo chega a uma cidade e diz:- esta não é a minha cidade.

Em janeiro eu sabia de muita coisa. Falara com milhares de vagabundos e cada
um contara-me uma história diferente.
Com estas histórias, pensei eu, irei construir a minha própria história. Aliás,
acontece sempre assim. Um homem ouve a história deste e daquele, visita meia
dúzia de lugares mais ou menos estranhos e a partir daqui elabora a sua própria
história.
Assim aconteceria e no fim de janeiro, eu tinha partido para junto do mar, pois iria morrer brevemente.
Levava um espelho.
Levava um espelho para cuidar do meu envelhecimento. Um espelho oval, com
curiosas propriedades. Por exemplo, capaz de dispor as imagens numa ordem cronológica decrescente.
Toda a cidade estava à janela para ver como se inclinavam as figueiras sobre os figos da primavera azul-escura.
Havia violas dos lados e à frente a Filarmónica-tudo isto, é preciso não esquecer,
se deslocava de cima para baixo. Este movimento é uma réplica ao movimento dos sonhos que se destroem pela noite fora.
No grande largo (há sempre um largo forrado de azulejos púrpura) alguém me disse:- a tua idade é assim- de encontro à estrada como nos romances.
Percorri ainda com maior atenção os estreitos vales interiores e depois foi noite.Então disse:
- A noite é dos jovens que usam longos cactos nos cabelos, cactos dóceis.
Em dezembro, numa cidade do interior, apetecer-me-ia dizer a alguém:- sou um vagabundo. Venho de muito longe. Mas quem me acreditaria?
Eu começava a envelhecer. Em breve, amanhã ou depois de amanhã, morreria.
-É difícil morrer?, perguntei.
Ninguém respondeu.
E lá fora era maio, outubro, ou janeiro com neve. E sentados na neve estavam os mestres. Falavam de Deus, essa terrível bondade.
Eu tinha um espelho onde envelhecia e habitava numa casa junto ao mar. Uma casa estranha, sem telhados, sem paredes, sem janelas, nem portas. Uma casa desprovida de violência, um pequeno lugar estático, absurdo como nos sonhos.
Apesar de tudo um lugar.
Mas que sabemos nós destes pequenos lugares tão aparentemente tenebrosos, destas casas, das pessoas que nos inspiram?
Imaginemos um vagabundo que chega a um pequeno lugar sem clima, onde não há silêncio, onde não se cultivam batatas, nem couves.
É um lugar que não existe nos mapas,nem nos livros.
Que não existe."

Mário-Rui Cordeiro in CENTRAL PARK, (livro inédito)


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