Friday, May 29, 2009

 
" O BOI DA PACIÊNCIA


Noite dos limites e das esquinas nos ombros
noite por de mais aguentada com filosofia a mais
que faz o boi da paciência aqui?
que fazemos nós aqui?
este espectáculo que não vem anunciado
todos os dias cumprido com as leis do diabo
todos os dias metido pelos olhos adentro
numa evidência que nos cega
até quando?
Era tempo de começar a fazer qualquer coisa
os meus nervos estão presos na encruzilhada
e o meu corpo não é mais que uma cela ambulante
e a minha vida não é mais que um teorema
por de mais sabido!


Na pobreza do meu caderno
como inscrever este céu que suspeito
como amortecer um pouco a vertigem desta órbita
e todo o entusiasmo destas mãos de universo
cuja carícia é um deslizar de estrelas?
Há uma casa que me espera
para uma festa de irmãos
há toda esta noite a negar que me esperam
e estes rostos de insónia
e o martelar opaco num muro de papel
e o arranhar persistente duma pena implacável
e a surpresa subornada pela rotina
e o muro destrutível destruindo as nossas vidas
e o marcar passo à frente deste muro
e a força que fazemos no silêncio para derrubar o muro
até quando? até quando?


Teoricamente livre para navegar entre estrelas
minha vida tem limites assassinos
Supliquei aos meus companheiros: Mas fuzilem-me!
Inventei um deus só para que me matasse
Muralhei-me de amor
e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim e ao cabo
recomeçar
Mas estou cansado de recomeçar!
Quereria gritar: Dêem-me árvores para um novo recomeço!
Aproximem-me a natureza até que a cheire!
Desertem-me este quarto onde me perco!
Deixem-me livre por um momento em qualquer parte
para uma meditação mais natural e fecunda
que me afogue o sangue!
Recomeçar!


Mas originalmente com uma nova respiração
que me limpe o sangue deste polvo de detritos
que eu sinta os pulmões como duas velas pandas
e que eu diga os nomes dos mortos e dos vivos
em nome do sofrimento e da felicidade
em nome dos animais e dos utensílios criadores
em nome de todas as vidas sacrificadas
em nome dos sonhos
em nome das colheitas em nome das raízes
em nome dos países em nome das crianças
em nome da paz
qua a vida vale a pena que ela é a nossa medida
que a vida é uma vitória que se constrói todos os dias
que o reino da bondade dos olhos dos poetas
vai começar na terra o horror e a miséria
que o nosso coração se deve engrandecer
por ser tamanho de todas as esperanças
e tão claro como os olhos das crianças
e tão pequenino que uma delas possa brincar com ele


Mas o homenzinho diário recomeça
no seu grito de desencontros
A fadiga substituiu-lhe o coração
As cores da inércia giram-lhe nos olhos
Um quarto de aluguer
Como preservar este amor
ostentando-o na sombra?
Somos colegas forçados
Os mais simples são os melhores
nos seus limites conservam a humanidade
Mas este sedento lúcido e implacável
familiar do absurdo que o envolve
com uma vida de relógio a funcionar
e um mapa da terra com rios verdadeiros
correndo-lhe na cabeça
como poderá suportar viver na contenção total
na recusa permanente a este absurdo vivo?
Ó boi da paciência que fazes tu aqui?
Quis tornar-te amável ser teu familiar
fabriquei projectos com teus cornos
lambi o teu focinho acariciei-te em vão


A tua marcha lenta enerva-me e satura-me
As constelações são mais rápidas nos céus
a terra gira com um ritmo mais verde que o teu passo
Lá fora os homens caminham realmente
Há tanta coisa que eu ignoro
e é tão irremediável este tempo perdido
Ó boi da paciência sê meu amigo! "

António Ramos Rosa, in NÃO POSSO ADIAR O CORAÇÃO,
1974, Lisboa, Plátano Editora

Sunday, May 17, 2009

 
"Em setembro este homem caminhava sozinho numa cidade
desconhecida. Não conhecia ninguém, não conhecia mesmo
as coisas mais simples: um livro, uma casa, uma estrela. Era
o envelhecer que se aproximava e ele dizia: estou velho.
Outras vezes pensava: preciso muito de morrer.
Em setembro, ou talvez em março, ou janeiro esse homem
partiu e disse:
- vou partir.
- vais esquecer tudo isto. E não voltas, não tencionas voltar?-
perguntaram-lhe as pessoas.
- Não sei, respondeu. Nunca se sabe o que acontece, compreendem?
Estou comprometido até aos cabelos. É urgente que parta. Percebem?
No entanto partir é uma decisão perigosa. Transforma-nos, mata-nos.
É muito cansativo.
Esse homem caminhava devagar para ouvir os próprios passos e um dia
chegou. Imaginem: um homem chega a uma cidade desconhecida,
senta-se na mesa dum pequeno bar e pede:
- Cerveja.
É um homem indecifrável que viajou toda a semana pelas cidades mais
estrangeiras duma Europa esgotada. Pode mesmo dizer-se que é um
homem tranquilo, obscuro, este que pede:- uma cerveja. Simplesmente.
O bar é como uma estreita plantação de bebedeiras e prostitutas. Há
barulho, os ruídos enervantes das máquinas de jogo, a luz passivamente
ténue de três lâmpadas vermelhas, funcionalmente suspensas no tecto
alto e a cerveja é um líquido cruel, uma espécie de pedra liquefeita que
nos faz sentir muito sós, muito verdadeiros.
Afinal o que seríamos nós sem a doçura clandestina dos bares abarrotados
de prostitutas e cerveja?
Um homem viaja durante cinco dias e no sexto chega a Bruxelas e entre
centenas, talvez milhares de cervejarias, decide-se por uma que tem aos
seus olhos um aspecto, digamos, misterioso. Senta-se a uma mesa e pela
primeira vez em seis dias pede: uma cerveja.
Um homem em Bruxelas escreve sobre a mesa colorida dum bar, longas
e embriagadas cartas. Às vezes pára e relê pela centésima vez o que
escreveu e depois sorri. É um homem só, de olhos revoltados, que descreve
em velhos papéis sem linhas os crimes que ainda não praticou.
Conhece algumas cidades do mundo e muito seguro disso diz para alguém
que não está a seu lado:- conhece Londres, Paris, Tóquio, Moscovo?...Pois
eu conheço e isso endoidece-me.
Há também o amor: a outra face do espectáculo.
Como será o amor deste homem que, só, à mesa dum Bar de Bruxelas,
escreve sobre crimes e criminosos desconhecidos?
Certamente um amor arrojado e ilegal, a que não falta a imaginação
avassaladora de muitos lugares e do mundo.
Mas que sabemos nós do amor, dessa coisa misteriosa que nos inspira?"

Mário-Rui N. Cordeiro in CENTRAL PARK, livro inédito

Friday, May 01, 2009

 
"Em janeiro tinha já aprendido como era. Coleccionava lugares e
emoções, na esperança de poder vir mais tarde a elaborar uma
unidade.
Saía assim da tristeza, esse lugar lentamente terrível.
Às vezes com outros falava durante horas de tudo isto, impregnando
o espaço de dúvidas, estabelecendo a confusão.
Outros vinham e diziam que era indecente a vida que levávamos.
Em janeiro chovia, chovia sempre.
- é um mês cada vez mais triste- diziam os noticiários. E eu achava isto
muito solene, uma espécie de ritual diário, fruto duma terrível doença
sedentária. Era como se não existisse ternura. E pensava:
- Um lugar sem ternura. Será isto possível?
Outros faziam fotografias.
- Isto ajuda a memória- diziam.
E escreviam por trás: recordação daqui, recordação dali. Sorriam contentes
e partiam.
Entretanto janeiro continuava um mês triste.
Janeiro- o princípio.
Isto cheira a religião, a geografia.
Mas continuemos, falemos de qualquer coisa distante: as luzes, as vozes,
por exemplo. Que há para dizer disto? Certas vezes parece-me ter sido dito
tudo o que podia ser dito sem perigo.
Entretanto janeiro acabara e eu sabia já, mais ou menos como era. Estava
ali como se esperasse alguém. Alguém que dissesse:
Vim ter contigo (ou qualquer coisa do género).
Esperava. Não tinha coragem.
E diariamente chegavam outros com as mesmas ilusões. E diziam satisfeitos:
- chegámos, ora vêem que chegámos?
E destes uns ficavam e procuravam emprego. Atiravam-se à primeira coisa
que aparecia. Tentavam levar uma vida o mais honesta possível. Às vezes
não conseguiam.
Outros, passados dias, decidiam continuar. Diziam:
- Vou para aqui.
- Eu vou para além. Lá é que é bom.
E partiam.
Nós ficávamos. Éramos cada vez mais. Às vezes um de nós, no intervalo
de duas chupadelas no cigarro, dizia, não muito alto para não ser ouvido:
- Abaixo a exploração do homem pelo homem. Viva a luta de classes.
Entretanto Janeiro acabara e lá fora chovia.
Às vezes chegavam cartas e por aí sabíamos que tudo continuava na
mesma.
Não há nome para isto, nem os deuses se salvam.
Apesar de tudo, o melhor será pensar num lugar ao sol. Escrever também
sobre o amor dos pais pelos filhos. Sobre a existência, etc. Sobretudo é
preciso não ficar.
Caminhar no incerto e não ser feliz, é que é importante.
Porque ser alguém na vida é feio."

Mário-Rui N. Cordeiro in CENTRAL PARK (livro inédito)

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