Sunday, May 17, 2009

 
"Em setembro este homem caminhava sozinho numa cidade
desconhecida. Não conhecia ninguém, não conhecia mesmo
as coisas mais simples: um livro, uma casa, uma estrela. Era
o envelhecer que se aproximava e ele dizia: estou velho.
Outras vezes pensava: preciso muito de morrer.
Em setembro, ou talvez em março, ou janeiro esse homem
partiu e disse:
- vou partir.
- vais esquecer tudo isto. E não voltas, não tencionas voltar?-
perguntaram-lhe as pessoas.
- Não sei, respondeu. Nunca se sabe o que acontece, compreendem?
Estou comprometido até aos cabelos. É urgente que parta. Percebem?
No entanto partir é uma decisão perigosa. Transforma-nos, mata-nos.
É muito cansativo.
Esse homem caminhava devagar para ouvir os próprios passos e um dia
chegou. Imaginem: um homem chega a uma cidade desconhecida,
senta-se na mesa dum pequeno bar e pede:
- Cerveja.
É um homem indecifrável que viajou toda a semana pelas cidades mais
estrangeiras duma Europa esgotada. Pode mesmo dizer-se que é um
homem tranquilo, obscuro, este que pede:- uma cerveja. Simplesmente.
O bar é como uma estreita plantação de bebedeiras e prostitutas. Há
barulho, os ruídos enervantes das máquinas de jogo, a luz passivamente
ténue de três lâmpadas vermelhas, funcionalmente suspensas no tecto
alto e a cerveja é um líquido cruel, uma espécie de pedra liquefeita que
nos faz sentir muito sós, muito verdadeiros.
Afinal o que seríamos nós sem a doçura clandestina dos bares abarrotados
de prostitutas e cerveja?
Um homem viaja durante cinco dias e no sexto chega a Bruxelas e entre
centenas, talvez milhares de cervejarias, decide-se por uma que tem aos
seus olhos um aspecto, digamos, misterioso. Senta-se a uma mesa e pela
primeira vez em seis dias pede: uma cerveja.
Um homem em Bruxelas escreve sobre a mesa colorida dum bar, longas
e embriagadas cartas. Às vezes pára e relê pela centésima vez o que
escreveu e depois sorri. É um homem só, de olhos revoltados, que descreve
em velhos papéis sem linhas os crimes que ainda não praticou.
Conhece algumas cidades do mundo e muito seguro disso diz para alguém
que não está a seu lado:- conhece Londres, Paris, Tóquio, Moscovo?...Pois
eu conheço e isso endoidece-me.
Há também o amor: a outra face do espectáculo.
Como será o amor deste homem que, só, à mesa dum Bar de Bruxelas,
escreve sobre crimes e criminosos desconhecidos?
Certamente um amor arrojado e ilegal, a que não falta a imaginação
avassaladora de muitos lugares e do mundo.
Mas que sabemos nós do amor, dessa coisa misteriosa que nos inspira?"

Mário-Rui N. Cordeiro in CENTRAL PARK, livro inédito

Comments:
"É urgente que parta. Percebem?
No entanto partir é uma decisão perigosa. Transforma-nos, mata-nos."

Um dia parti mas hoje estou de volta.Não quero deixar-me levar pela morte.

Beijinhos
 
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