Monday, December 01, 2008

 
"Era uma vez um exilado que levava uma vida estranha.
Vivia para os lados do Quartier Latin e a única coisa que
podia, em parte, contrariar as leis da tradição, era o facto
de ele subsistir fazendo gaiolas de arames pacientemente
retorcidos, que vendia a amigos e conhecidos. Para além
disso, de conseguir viver à custa de pequenas obras, era
diferente de todos. Nada existia nele de subversivo. Não
distribuía panfletos, não escrevia cartas anónimas, não
se queixava, nem sorria.
Dia e noite construía gaiolas e desenhava estranhos pássaros
que recortava em cartolinas coloridas.
Uma vez ofereceram-lhe um pintassilgo embalsamado. Foi uma
alegria. Eu nunca vira um exilado alegre e perguntava: se
seria possível.
Via-o descer e subir as escadas do seu exílio, ou encontrava-o
no Metro, assobiando como os pássaros do seu país natal,
para ganhar alguns francos aos viajantes que passavam
apressados.
Um dia decidiu construir uma gaiola só para si e colocou o
pintassilgo na janela. Ali ficou durante semanas, meses
seguidos, comendo alpista e invejando a avassaladora liberdade
do pintassilgo embalsamado, que a todo o momento parecia
que ia levantar voo e abandoná-lo à sua pouca sorte de exilado
sem vocação política. Que, ao contrário dos outros, não
procurava o apoio desinteressado dos dirigentes locais, ou a
solidariedade eficaz do partido.
Era um exilado que inspirava pouca confiança, sem a mínima
noção de disciplina, que perdera muitas noites bebendo cerveja
com gente suspeita.
Agora, imóvel, sem nome, na sua gaiola de arames, saboreia
alpista. E não fala, nem assobia.
Chegados os primeiros dias de inverno pegou no pintassilgo
embalsamado e saiu com ele pela janela, voando o melhor que
podia, de encontro aos primeiros flocos de neve que entapetavam
o asfalto triste.
Era um exilado transmutando-se em silêncio, que em tudo era
diferente dos outros. Construiu durante tantos anos gaiolas,
que acabou por se transformar num pássaro dono dum voo
implacável.
Que coisa antiga é esse desejo? Voar."

Mário Rui Cordeiro in "CENTRAL PARK", inédito

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