Wednesday, May 02, 2007

 
As notícias que nos chegam do hospital são de molde a
sossegar a boa consciência de todas as almas preocupadas
com os desatinos do Afonso. Por fim, sossegara. Só não
dera mostras de grande arrependimento. Disse-lhes:
esperem pela próxima e verão o trambolhão do médico
de serviço e de todas as enfermeiras que aí ocupam os
tempos menos livres de que há notícia. Uma louca
correria pelos corredores, só de loucos, pensou o Afonso.
Vou sossegar, exigir todo o silêncio a que tenho direito,
nem mais uma palavra direi a esta gente.
Foi neste puro estado de indiferença por tudo o que o
rodeia que o Afonso entrou num mutismo absoluto, qual
palavra, qual carapuça, a língua recolhera e nem pio. Na
aldeia a sorte do Afonso era comentada de frente para
trás e de trás para a frente. Nas traseiras da Igreja
assentara o povo arraial e não havia meio de arredar
pé. Nem a água que chovia copiosamente, bátegas e
bátegas desciam sobre o povoado, o padre sempre a
dizer orações, o povo a repetir todas aquelas santas
palavras e ninguém vira semelhantes acontecimentos.
Tudo gente de trabalho, nos campos e nas fábricas, nos
mares e nos rios, nas florestas e nos descampados, nos
silvedos e nos montes, aí estava o povo sempre de pé,
teso e forte, cumprindo a missão que o destino lhe
traçara, sem queixume, sem uma imprecação aos céus,
com dor e sem glória, mas com uma imensa força
interior, que é para a frente que se deve andar, para
trás mija a burra, lembrou-se a velha Felismina, por
detrás dela havia agora um fogo enorme, um súbito
clarão, para lá se viraram os olhos de todo o povo,
milagre? não podia ser, um povo já martirizado não
pode ligar assim a milagres sem jeito nenhum, é um
fogo a bailar nos céus, até o mar arde assim em certas
horas, um fogo a latejar nas fontes. Afonso conservara
o seu mutismo, um segredo bem guardado, vão chatear
o caralho, que médico estúpido e estas cabronas por
que não me largam a braguilha? Andava para trás e
para a frente, frios e longos corredores ajudavam às
correrias, corriam a trote, só se me arranjarem uns
patins iguais aos da infância, o jardim zoológico, os
animais de estimação, os enjaulados, as cobras, são
maus como as cobras, quem disse que as cobras são
más? Larguem-me da mão, assim pensava, nada
dizia.
No adro era já conhecida a grande notícia: o Afonso
não diz uma palavra e agora tudo se torna mais
complicado. Quem tanto fala, muito erra, estou
calado, já disse, não quero errar, ofereço-vos o
privilégio do erro, foi desta maneira muito curiosa
que Afonso arrumou a questão, niente, nada, nada.
Quem poderá adivinhar o que vai na mente de um
homem que habita o silêncio, quem? nada nem
ninguém jamais conseguirá quebrar o muro das
palavras por dizer, o silêncio habita este vasto
mundo e é agora um privilégio utilizado pelo Afonso
para dar cabo da cabeça do médico, dos enfermeiros,
do padre, da velha Felismina, e de todo aquele imenso
povo que parte agora para a procissão com as imagens
mais santas às costas e que aguarda ansiosamente
pelo tão esperado milagre, se não houver milagre,
dissera o Cu à Vela parto este santo à cachaporra
e nunca mais ninguém me vê dentro da igreja, já
estava desconfiado da esperteza do Afonso, é doido,
qual doido? doidos somos nós que nos fartamos de
trabalhar, é um santo talvez, naquele momento
inenarrável o Afonso dissera para dentro, são todos
uns desgraçados, uns desgraçados que se matam
a trabalhar para nada, para nada...Uns desgraçados
é o que são, a miséria maior de todas por onde
andará?

(J.A.R.)

Comments:
Gosto de vir ler a esta hora, já depois do stress do dia, é talvez a melhor hora para entrar na sua escrita com alma.

Quando um homem se remete ao silêncio é porque necessita de espaço para pensar, sentir. Será?
Há grandes emoções num silêncio propositado.

Abraço Zé
 
Alex:)

Boa noite!
O silêncio é sempre uma tábua de salvação...Não é só o ruído, é a tagarelice, é a obrigação de falar sempre, é a má língua instalada como se fora uma grande qualidade, como se fosse sinal de inteligência...
Um grande abraço e obrigado pela sua presença ao nosso lado nesta caminhada!
 
Alex:)

Boa noite!
O silêncio é sempre uma tábua de salvação...Não é só o ruído, é a tagarelice, é a obrigação de falar sempre, é a má língua instalada como se fora uma grande qualidade, como se fosse sinal de inteligência...
Um grande abraço e obrigado pela sua presença ao nosso lado nesta caminhada!
 
Alex:)
O meu comentário inventou um duplo, ou talvez um irmão gémeo!...pretexto para lhe desejar um Bom Fim de Semana!
 
:)

sempre a dobrar Zé!
 
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