Sunday, August 05, 2007

 
"
ADIAMENTO

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é dia de planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e práctico
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim talvez só depois de amanhã...


O porvir...
Sim o porvir...
"
Fernando Pessoa, in "Ficções do Interlúdio 1914-1935", Assírio e Alvim,
edição Fernando Cabral Martins, Maio 1998


Comments:
Quando comecei a ler fiquei embasbacado. De rest, confesso que fico muitas vezes embasbacado. Cheirou-me imediatamente a Álvaro de Campos.

Obrigado pelo regresso. Tenho uma monografia de uma aldeia da Beira para te mostrar: Alcafozes, Idanha-a-Nova. Corresponde ao que eu queria para a minha coisa. Com urgência.

Temos de nos encontrar, aqui ou algures. Preciso da tua ajuda.

Um abraço,
Manuel
 
Olá, Manuel!
Este poema é o meu "Adiamento"!...Ainda estou a pensar...
Dispõe. Podemos ver isso quando quiseres, mas aí será difícil porque, para já, a chave do meu carro eclipsou-se...
Um grande abraço!
 
E eu a pensar que só a lua ou o sol se eclipsavam...
Um tal Jacques Prévert também falou de eclipse referindo-se a Luís XVI, creio.

Abraço,
Manuel
 
De passo em passo
A coruja que vê de dia, chamaria a este vôo rasante. Uma prosa brilhante. Uma escolha de brilhantes. Abç
 
Obrigado,bettips!
Até breve. Um abraço:)
 
Que bem seleccionado, ZR!

Em grande!
(Bom, que o ZR conhece-lhes, de todos, as melhores castas...)
Até...
 
Não me digam nada, amanhã logo se vê. Sim amanhã! Porquê Hoje? Amanhã, já disse! Que vontade de dormir e estas vozes que não páram! Intercalo a vontade com o desejo de me calar, porque não me deixam chorar? Porque não me deixam? E estas vozes, estas vozes do contratempo. De momento não tenho nada, nada, eu bem tento, e tento e tento mas sei que amanhã terei tudo e todo o tempo do mundo para falar, para inventar segredos, para inventar novas formas de esconder o medo.
Amanhã! Amanhã! Hoje quero deitar-me e permitir-me não ser.





Mas não deixo para amanhã um abraço a um amigo especial.
Zé :) Belíssima escolha.
 
Alex, um grande abraço:)
Já estou hoje por aqui...sempre com uma amiga muito especial!
Quando era pequenino e a tempestade era muita...escolhia um cantinho à espera que tudo amainasse...
Um beijo também!
 
um cantinho Zé:)
 
Primeiro surpreendente e de certo modo assustador, logo depois já se conseguia adivinhar.
Belo texto, voo rasante como dia a minha querida Bettips.
Um abraço
 
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