Sunday, September 19, 2010
"PARA ALÉM DO VOO DA CORUJA, AS FRONTEIRAS DO ENIGMA
Ao José Antunes Ribeiro
Por mim falar-te-ei do esquecimento e da perda, de tantos sonhos arrastados no fluir desse rio de que somos secretamente cúmplices, soletrando a disforia, navegando memórias para sempre coladas à vertigem de um voo que é elogio da opacidade, forma visível de nomear a estreiteza do tempo.
Nas tuas palavras respiro a teoria do fogo, a projecção infinita do sangue, como sentir iluminado no momento de contabilizar ruínas e descobrir, no mais fundo do silêncio, o peso nocturno dos amigos mortos. Longe ou perto, o caminho da poesia inevitável. Longe ou perto, a voz da loucura mansa.
Era assim a aproximação do real, a sua negatividade devoradora. Por vezes, a ironia, a crueldade. Por vezes, a ternura espessa. Nas margens de uma revolução que foi cais de embarque para febres visionárias, a esperança a flutuar no imenso magma de pérfidas traições. Lisboa sem memória, apagada e frágil.
O teu rio atravessa os territórios da alma e fecunda o imenso mar da desordem, em cruzamentos de enigma para decifrar mais tarde. Por ele escorregam parcelas de identidade, emigrantes, retornados, canções de poetas exilados, sombras de jovens soldados para quem a morte se confunde com o perfume de sonhadas raparigas, grávidas talvez, a sorrir na eternidade das promessas, deusas de cabelos soltos ao vento, os gestos leves como ervas de amor, o álcool fugaz de todas as iniciações.
As sílabas do teu grito tecem pacientemente a urdidura das dúvidas, tecido manso de viagens para além do voo da coruja, seu riso de destinos entrelaçados na cruel passagem do tempo, de mãos dadas com a lua, a piar de lucidez como ninfa das trevas, incapaz de suportar a maldição da claridade.
O homem que se perde nas esquinas da cidade ignora certamente o murmúrio das águas que resvalam pelo medo, lágrimas litorais a conjurar a insolência das feridas, quando a explosão se anuncia por entre as palavras que dizem as múltiplas coagulações da violência, as pedras, os punhais, a lenta dissolução dos heróis em pátrias de autoridade e de conquista.
Mesmo se tudo passa como um imenso riso de fluidez obscura e ambígua, os poetas continuam a avançar pela caverna tenebrosa dos presságios, levando na mão uma tocha antiga que é chama capaz de iluminar a espessura perfeita do vazio. E assim tudo estremece na incerteza de um mundo vacilante, respeitando um ritual misterioso, inscrito em transparência nas raízes da voz, como imensa matriz cósmica, formuladora de infinitas possibilidades para o tormento de existir. À procura da totalidade. Escavando auroras por dentro da trama confusa do sentir. Na pista do esplendor.
De súbito, o relâmpago das palavras ilumina o horizonte. Alguém ousa a identificação dos contrários, na busca incessante de um percurso sem regresso nem destino, aprendizagem do caos em noites de amor e bruma.
A ave nocturna anuncia o rio do esquecimento, mas há namorados sentados à beira das ruínas, a construir enigmas com a sede das florestas junto ao mar. Entre a consciência e a noite, o corpo intacto, na travessia subtil das aparências.
O narrador confirma: "é sabido que só os poetas apontam o caminho"
Maria Graciete Besse
(Maria Graciete Besse é Professora Catedrática na Sorbonne, Paris IV, onde entre outras actividades, é responsável pela equipa de Estudos Lusófonos. Tem uma vasta obra publicada entre Poesia, Ficção e Ensaio.)
Ao José Antunes Ribeiro
Por mim falar-te-ei do esquecimento e da perda, de tantos sonhos arrastados no fluir desse rio de que somos secretamente cúmplices, soletrando a disforia, navegando memórias para sempre coladas à vertigem de um voo que é elogio da opacidade, forma visível de nomear a estreiteza do tempo.
Nas tuas palavras respiro a teoria do fogo, a projecção infinita do sangue, como sentir iluminado no momento de contabilizar ruínas e descobrir, no mais fundo do silêncio, o peso nocturno dos amigos mortos. Longe ou perto, o caminho da poesia inevitável. Longe ou perto, a voz da loucura mansa.
Era assim a aproximação do real, a sua negatividade devoradora. Por vezes, a ironia, a crueldade. Por vezes, a ternura espessa. Nas margens de uma revolução que foi cais de embarque para febres visionárias, a esperança a flutuar no imenso magma de pérfidas traições. Lisboa sem memória, apagada e frágil.
O teu rio atravessa os territórios da alma e fecunda o imenso mar da desordem, em cruzamentos de enigma para decifrar mais tarde. Por ele escorregam parcelas de identidade, emigrantes, retornados, canções de poetas exilados, sombras de jovens soldados para quem a morte se confunde com o perfume de sonhadas raparigas, grávidas talvez, a sorrir na eternidade das promessas, deusas de cabelos soltos ao vento, os gestos leves como ervas de amor, o álcool fugaz de todas as iniciações.
As sílabas do teu grito tecem pacientemente a urdidura das dúvidas, tecido manso de viagens para além do voo da coruja, seu riso de destinos entrelaçados na cruel passagem do tempo, de mãos dadas com a lua, a piar de lucidez como ninfa das trevas, incapaz de suportar a maldição da claridade.
O homem que se perde nas esquinas da cidade ignora certamente o murmúrio das águas que resvalam pelo medo, lágrimas litorais a conjurar a insolência das feridas, quando a explosão se anuncia por entre as palavras que dizem as múltiplas coagulações da violência, as pedras, os punhais, a lenta dissolução dos heróis em pátrias de autoridade e de conquista.
Mesmo se tudo passa como um imenso riso de fluidez obscura e ambígua, os poetas continuam a avançar pela caverna tenebrosa dos presságios, levando na mão uma tocha antiga que é chama capaz de iluminar a espessura perfeita do vazio. E assim tudo estremece na incerteza de um mundo vacilante, respeitando um ritual misterioso, inscrito em transparência nas raízes da voz, como imensa matriz cósmica, formuladora de infinitas possibilidades para o tormento de existir. À procura da totalidade. Escavando auroras por dentro da trama confusa do sentir. Na pista do esplendor.
De súbito, o relâmpago das palavras ilumina o horizonte. Alguém ousa a identificação dos contrários, na busca incessante de um percurso sem regresso nem destino, aprendizagem do caos em noites de amor e bruma.
A ave nocturna anuncia o rio do esquecimento, mas há namorados sentados à beira das ruínas, a construir enigmas com a sede das florestas junto ao mar. Entre a consciência e a noite, o corpo intacto, na travessia subtil das aparências.
O narrador confirma: "é sabido que só os poetas apontam o caminho"
Maria Graciete Besse
(Maria Graciete Besse é Professora Catedrática na Sorbonne, Paris IV, onde entre outras actividades, é responsável pela equipa de Estudos Lusófonos. Tem uma vasta obra publicada entre Poesia, Ficção e Ensaio.)
Comments:
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Chegam a ser ofuscantes de tanta cor, de tanto brilho, de tanta riqueza, de tanto significado... estas palavras!
Mesmo que a bruma se abata sobre a vertigem dos dias, valham as palavras como guia dum tempo que urge dizer, expressar, escrever!
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Mesmo que a bruma se abata sobre a vertigem dos dias, valham as palavras como guia dum tempo que urge dizer, expressar, escrever!
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