Sunday, January 31, 2010
HOMENAGEM AO MEU AMIGO EDUARDO BENTO
"A CASA
1. Este é o chão, aqui se molda a casa. Deste recanto ouvirei a coruja
e o noitibó esconjurando os astros. Abeiro-me já da janela para
sorver o sol ou ver a chuva. Aqui invento o olhar onde uma paisagem
me fala de todas as partidas e de nenhum regresso.
Será aqui a casa. Ela começa no bater do coração, ali na lisura das
paredes, onde a tarde perdeu todas as sombras, lá onde só resta a
pura fulguração da luz. A horizontal luz do teu olhar. Ah, faltam os
espinhos da roseira para prender os sonhos e o verde da camélia
para entreter os olhos.
2. O que sobrou do ferro, da pedra, da argamassa, do alisar das mãos
é agora a casa. Foi aqui que germinou o lancil e se abriu a porta e tu
disseste: Quero uma mesa que acolha todos os homens.
É macio o côncavo do dia. Mansa é a noite. A casa acolhe agora o
silêncio de muitas vozes. E a ternura dos gestos prende-se à fulguração
do lume, o sussurro da chama abranda a inquietação das horas e em
toda a casa perpassa o som dos teus passos.
Diria que o soalho acaricia os pés, as mãos acolhem a brancura do riso.
É aqui a partilha do pão, a maciez acidulada do vinho na toalha onde
ardem serenas palavras. Esta é a lenta demora, o lento declinar das
estrelas, no breve contentamento...Aqui é a casa.
3. Nenhum lugar é nosso e apenas resistimos ao pó. Mas agora é o tempo
da casa. Começa a cumplicidade dos sonhos, o desvendar deste recanto, a
intimidade das horas.
É preciso chegar à medula da casa e aí interrogar o corpo, beber devagar
o declinar dos dias, entretecer a noite e descobrir que o momento é toda
a eternidade. Retarda o encontro com a rua, com a urgência do tempo,
deixa que a ternura navegue pela casa e escuta o palpitar dos astros até
que a estrela da manhã se apague na lentidão do crepúsculo.
4. Podemos rodear a casa. Soletrar os ângulos. Tocar o branco da cal,
a dureza da pedra. Aqui demoro mas tão brevemente como é breve a
sombra do muro.
No jardim um pássaro acende a tarde e é verão...(Chamaste ou é o apelo
da noite que aí vem?)
5. Estamos sempre mais longe e não há regresso. A distância é o nevoeiro
dos dias, o apagamento da memória...Agora a casa é uma palavra em ruínas.
A mesa é feita de lugares vazios. A humidade saboreia a caliça e há raízes
investindo com os muros. A trave apodrecida é um mastro caído à espera
de outro mar.
Adivinho antigos rumores, vozes dispersas. Aqui um horizonte se apaga, breve
e última respiração das coisas. Agora só se ouve a débil pulsação da noite."
Eduardo Bento, in O NEVOEIRO DOS DIAS (65 Poemas), 2009, Ponte Editora
"A CASA
1. Este é o chão, aqui se molda a casa. Deste recanto ouvirei a coruja
e o noitibó esconjurando os astros. Abeiro-me já da janela para
sorver o sol ou ver a chuva. Aqui invento o olhar onde uma paisagem
me fala de todas as partidas e de nenhum regresso.
Será aqui a casa. Ela começa no bater do coração, ali na lisura das
paredes, onde a tarde perdeu todas as sombras, lá onde só resta a
pura fulguração da luz. A horizontal luz do teu olhar. Ah, faltam os
espinhos da roseira para prender os sonhos e o verde da camélia
para entreter os olhos.
2. O que sobrou do ferro, da pedra, da argamassa, do alisar das mãos
é agora a casa. Foi aqui que germinou o lancil e se abriu a porta e tu
disseste: Quero uma mesa que acolha todos os homens.
É macio o côncavo do dia. Mansa é a noite. A casa acolhe agora o
silêncio de muitas vozes. E a ternura dos gestos prende-se à fulguração
do lume, o sussurro da chama abranda a inquietação das horas e em
toda a casa perpassa o som dos teus passos.
Diria que o soalho acaricia os pés, as mãos acolhem a brancura do riso.
É aqui a partilha do pão, a maciez acidulada do vinho na toalha onde
ardem serenas palavras. Esta é a lenta demora, o lento declinar das
estrelas, no breve contentamento...Aqui é a casa.
3. Nenhum lugar é nosso e apenas resistimos ao pó. Mas agora é o tempo
da casa. Começa a cumplicidade dos sonhos, o desvendar deste recanto, a
intimidade das horas.
É preciso chegar à medula da casa e aí interrogar o corpo, beber devagar
o declinar dos dias, entretecer a noite e descobrir que o momento é toda
a eternidade. Retarda o encontro com a rua, com a urgência do tempo,
deixa que a ternura navegue pela casa e escuta o palpitar dos astros até
que a estrela da manhã se apague na lentidão do crepúsculo.
4. Podemos rodear a casa. Soletrar os ângulos. Tocar o branco da cal,
a dureza da pedra. Aqui demoro mas tão brevemente como é breve a
sombra do muro.
No jardim um pássaro acende a tarde e é verão...(Chamaste ou é o apelo
da noite que aí vem?)
5. Estamos sempre mais longe e não há regresso. A distância é o nevoeiro
dos dias, o apagamento da memória...Agora a casa é uma palavra em ruínas.
A mesa é feita de lugares vazios. A humidade saboreia a caliça e há raízes
investindo com os muros. A trave apodrecida é um mastro caído à espera
de outro mar.
Adivinho antigos rumores, vozes dispersas. Aqui um horizonte se apaga, breve
e última respiração das coisas. Agora só se ouve a débil pulsação da noite."
Eduardo Bento, in O NEVOEIRO DOS DIAS (65 Poemas), 2009, Ponte Editora
Comments:
<< Home
olà Zé,
adorei este texto,
nao conhecia,
està publicado na ulmeiro?
Gostei muito, vi tudo...
Merci, bjo
LM
adorei este texto,
nao conhecia,
està publicado na ulmeiro?
Gostei muito, vi tudo...
Merci, bjo
LM
Corrigi entretanto uma arreliadora gralha no último parágrafo:
onde se lia "(...)aqui um homem se apaga" deveria ler-se:"(...)aqui um horizonte se apaga(...)". Peço desculpa a todos/a todas aquem enviei por mail este belíssimo poema!
Lídia, a edição é de 1999, de uma pequena editora de Torres Novas: Ponte Editora!
Poderia ser também da Ulmeiro, claro está! Mas não é. E a Ulmeiro está "congelada"...talvez de frio!...
Beijos!
Post a Comment
onde se lia "(...)aqui um homem se apaga" deveria ler-se:"(...)aqui um horizonte se apaga(...)". Peço desculpa a todos/a todas aquem enviei por mail este belíssimo poema!
Lídia, a edição é de 1999, de uma pequena editora de Torres Novas: Ponte Editora!
Poderia ser também da Ulmeiro, claro está! Mas não é. E a Ulmeiro está "congelada"...talvez de frio!...
Beijos!
<< Home