Friday, May 01, 2009

 
"Em janeiro tinha já aprendido como era. Coleccionava lugares e
emoções, na esperança de poder vir mais tarde a elaborar uma
unidade.
Saía assim da tristeza, esse lugar lentamente terrível.
Às vezes com outros falava durante horas de tudo isto, impregnando
o espaço de dúvidas, estabelecendo a confusão.
Outros vinham e diziam que era indecente a vida que levávamos.
Em janeiro chovia, chovia sempre.
- é um mês cada vez mais triste- diziam os noticiários. E eu achava isto
muito solene, uma espécie de ritual diário, fruto duma terrível doença
sedentária. Era como se não existisse ternura. E pensava:
- Um lugar sem ternura. Será isto possível?
Outros faziam fotografias.
- Isto ajuda a memória- diziam.
E escreviam por trás: recordação daqui, recordação dali. Sorriam contentes
e partiam.
Entretanto janeiro continuava um mês triste.
Janeiro- o princípio.
Isto cheira a religião, a geografia.
Mas continuemos, falemos de qualquer coisa distante: as luzes, as vozes,
por exemplo. Que há para dizer disto? Certas vezes parece-me ter sido dito
tudo o que podia ser dito sem perigo.
Entretanto janeiro acabara e eu sabia já, mais ou menos como era. Estava
ali como se esperasse alguém. Alguém que dissesse:
Vim ter contigo (ou qualquer coisa do género).
Esperava. Não tinha coragem.
E diariamente chegavam outros com as mesmas ilusões. E diziam satisfeitos:
- chegámos, ora vêem que chegámos?
E destes uns ficavam e procuravam emprego. Atiravam-se à primeira coisa
que aparecia. Tentavam levar uma vida o mais honesta possível. Às vezes
não conseguiam.
Outros, passados dias, decidiam continuar. Diziam:
- Vou para aqui.
- Eu vou para além. Lá é que é bom.
E partiam.
Nós ficávamos. Éramos cada vez mais. Às vezes um de nós, no intervalo
de duas chupadelas no cigarro, dizia, não muito alto para não ser ouvido:
- Abaixo a exploração do homem pelo homem. Viva a luta de classes.
Entretanto Janeiro acabara e lá fora chovia.
Às vezes chegavam cartas e por aí sabíamos que tudo continuava na
mesma.
Não há nome para isto, nem os deuses se salvam.
Apesar de tudo, o melhor será pensar num lugar ao sol. Escrever também
sobre o amor dos pais pelos filhos. Sobre a existência, etc. Sobretudo é
preciso não ficar.
Caminhar no incerto e não ser feliz, é que é importante.
Porque ser alguém na vida é feio."

Mário-Rui N. Cordeiro in CENTRAL PARK (livro inédito)

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1979. Vestia ganga e poesia, com poderosos cabelos compridos e barba a condizer. Entre a Chave d'Ouro, o muro da vergonha e o Pelicano, transformava a cidade de Abrantes em algo de mágico que apenas conseguíamos vislumbrar, para além dos seus poemas perfeitos e desenhos desalinhados. Por entre as cervejas e um cigarro, falava de Paris e de Bruxelas, tão distantes nessa época, onde tinha deixado a sua memória, os seus melhores poemas e o amor da sua vida.
Nós ouvíamos as suas palavras, umas vezes sofridas, outras zangadas e ainda outras exuberantemente alegres, orgulhosos dos poemas que nos emprestava, para lermos na nossa solidão provinciana. Ao vir de Mação, do colégio D. Pedro V para o Liceu, antigo La Salle, nada me preparara para o encontro real com a poesia. Poesia essa que deambulava incontrolável pelas calçadas mais antigas de Abrantes, entre a Antiga Casa Vigia e a Toca, passando pelo Picha Fria e a Tendinha. E tinha ombros, ombros de ganga e cabedal de encadernações. E tinha um rosto, uma voz... uma imensidão que ainda não sei se esta cidade descobriu ou merece. O Mário descia a rua e dizia em jeito de confidência: ...ao chegar a Portugal roubaram-me o passaporte! E tudo nos parecia fantasticamente surreal nesta pequena frase. Os seus desenhos, de barcos perdidos em terra, eram o golpe final na nossa imaginação.
Mário Cordeiro não era apenas o Mestre escondido por trás das palavras, era a personificação de tudo aquilo que não tínhamos coragem de ser.
Obrigado Mário por teres passado pela minha vida.

Um abraço,

Cardoso, o Serrano.
 
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