Sunday, October 12, 2008

 
"Um homem nasce, cresce, deita-se e levanta-se conforme
a luz do universo. Fala, conta histórias fabulosas, casos
incríveis que nunca lhe aconteceram e sabe de cor palavras
da bela literatura. Um dia, cansado de falar, escreve, com a
sua melhor caligrafia, para que se perceba, uma história
sem dramas, nem casos pessoais.
Um homem escreve, utiliza as palavras que lhe emprestaram,
as frases, os vocabulários. Escolhe os melhores argumentos,
inventa um ou outro adjectivo, imagina um tema. O seu tema
preferido.
É uma história sem dicionários pelo meio, com um alfabeto
muito rudimentar, repleta de palavras que as pessoas pronunciam
para se entenderem quando se encontram nas ruas inóspitas
das cidades.
Uma noite, o homem não dorme e inventa um pequeno diálogo,
depois gosta do nome de uma flor, sente as palavras de cor e
salteado como uma recordação da sua pequena infância e cria
meia-dúzia de personagens de vidro, que vagueiam na sua mente
abstracta e intermitentemente como lâmpadas de gaz rarefeito.
Um homem através das estradas e caminhos desconhecidos,
dactilografa as personagens de um sonho, bebe toda a poesia de
uma pequena história, espreita as palavras que se olham ao
espelho como rostos belos, como pinturas coloridas, como vitrais
de música no interior de igrejas de gelo fervendo.
Trata-se afinal de uma história sobre a curiosidade humana, sobre uma tempestade ocidental. São colinas de palavras, espumas de letras
impressas, decalques de água putrefacta.
É isto. Um homem, no fim de contas, chegada a noite, deambula por
uma cidade. De seu tem só uma história escrita em papel amarelado
para dar a alguém. É a solidariedade dos homens, dos seres e das coisas.
E é tão natural tudo isto, como uma planície com árvores esperando o
verão para darem sombra.

Um dia outro homem caminha pelo espaço vago das ruas. Em Londres
conhece uma mulher. Em Paris ouviu falar de mistérios universais
e essa história é isso-tão simples como a vida, tão pontual e cheia de
tempo como os climas de quatro estações.
Às vezes esse homem encontra outros homens e diz-lhes:- estou a
escrever uma história. As palavras têm muitos sentidos. Sabia?
E respondem-lhe:- As palavras muitas vezes não querem dizer
nada. São palavras. E não pertencem aos outros. Escreva-as. São as
suas, foi você que lhes deu vida, que experimentou os seus sons
coloridos.
Um homem pensa quando oferece a alguém um papel escrito:-essa
é a minha história. Não escreva isso.
Todas as histórias têm um homem por trás, um nome e um sentido.
E ninguém pode esquecer isso sem correr o risco de vir a perder o dom
de se fazer perceber no seio dos outros homens e morrer por falta
de palavras, absurdamente, sem significado, no meio da praça
pública da cidade adormecida."

Mário-Rui N. Cordeiro, CENTRAL PARK, livro inédito

Comments:
"Um homem nasce, cresce, deita-se e levanta-se conforme
a luz do universo"...

Exacto.

Ritos, rotinas, rituais até que um dia... A luz do universo se lhe extingue

zl
 
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