Sunday, September 07, 2008

 
A pedido de "um certo olhar", este inédito de Mário-Rui Cordeiro:

"Inesperadamente me encontro num pátio cheio de magnólias e
flores terríveis. As crianças invadem os caminhos, há plantas simples
nas janelas e o jovem que ontem fugia, hoje perde-se a cada encontro.
Eis como as histórias acontecem. Eis os códigos, as leis e os jornais.
Eu sou um estrangeiro que passa, um músico cheio de artifícios.
Era uma vez uma mulher deitando água às flores. Eis outra irremediável
história.
Uma partida leva-nos tudo: a magnitude, o entusiasmo, o frio e o calor.
Ficámos assim desprovidos daquilo a que se chama individualidade,
daquilo a que se chama destino.
Uma pessoa que está junto de nós parte e diz: vou partir.
-vai partir para a América, para o deserto, para a Nova Zelândia.
-vai viajar muito-dizem uns.
-vai conhecer coisas-dizem outros.
Porque se viaja, porque se percorrem cidades e países? É um ofício apaixonante
isto de viajar. Faz bem aos homens. Mostra-lhes novas direcções.
Uma pessoa parte e nós ficamos. Isto não é bom.
Uma pessoa parte e diz-nos: adeus, vou partir.
E nós dizemos: boa viagem.
Não dizemos mais porque a amamos. E amar é perigoso, meus senhores.
Restitui-nos uma espécie de inocência.
É perigoso elaborar uma pequena paixão, atravessar a cidade gritando:
o amor.
É preciso aproveitar os factos e descobrir as causas. Pegar nos motivos
e morrer por eles. Fazer isto milhares de vezes seguidas, como se esperássemos
alguém que nos fascina.
Peguemos depois nas palavras e falemos disto violentamente como se fôssemos
perder a razão.
Entremos e saiamos, deambulemos pela noite cheios de pensamentos dolorosos,
destruindo o silêncio que nos povoara nos anos anteriores.
Façamos isto devagar porque o mundo não existe."

Mário-Rui Cordeiro, CENTRAL PARK, (livro inédito)

Comments:
Uns dias de férias originaram um ligeiro atraso no comentário. Desculpa!
Um texto que foi delirantemente lido. Com um certo olhar. Destaco:
"amar é perigoso, meus senhores.
Restitui-nos uma espécie de inocência.
É perigoso elaborar uma pequena paixão, atravessar a cidade gritando:
o amor."
E apesar da inocência, vem a inquietação perigosa do amor.

Um autor que não pode ficar na escuridão que lhe têm votado.

Beijinho terno
 
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