Tuesday, June 19, 2007

 
Regressado ao lugar do destino Afonso serenara,
tal como as searas em tempo soalheiro. Sentado
junto à sua pobre habitação deitava os olhos para
o mais fundo do horizonte e meditava com a
memória ainda próxima as desgraças do filho da
puta do hospital.
Que grandes sodas, pensava. Já um homem não
pode fazer o que lhe dá na real gana. São todos uns
desgraçados. Matam-se a trabalhar, andam ao dia
fora a aturar uns bardamerdas que se julgam gente
só porque ajuntaram uns tostões. Boas merdas é o
que são.
O sol estava agora insuportável, Afonso despiu a sua
esfarrapada camisa, pegou na velha enxada e deitou-se
novamente ao trabalho como nos velhos tempos. É
agora mais imperioso do que nunca preparar as covas
ao redor dos pinheiros e eucaliptos para que mais
facilmente possam receber a santa água a que têm
direito. Afonso não recua um milímetro nos seus
santos propósitos de regressar em grande força
àquilo que o fizera célebre.
Era agora um homem conhecido, choviam telegramas
de felicitações de todo o país, aquela inteligência
nascera no mato mas não havia dúvidas de que era
agora património de toda a humanidade. Como
estarão recordados os meus amáveis leitores, o país
ainda não tem nisso grande pressa, mas já está
firmemente decidido a declarar o Afonso reserva
moral e intelectual da Nação.
Parece que esta sábia decisão deixou enrubescentes
as trombas de alguns medalhados generais, aqueles
de carinhas rosadas, estão a perceber, e que em
reuniões sociais sucessivas tentam dar a entender
que não acatarão estas ordens que vieram do alto,
mas quem desobedece e é tropa está fodido, dizem
os regulamentos. Talvez os regulamentos estejam
do lado do Afonso desta vez é o voto de todos os
seus inúmeros admiradores e admiradoras, estas
em maior número.
Quanto ao povo da aldeia a divisão é inevitável. A
partir do momento em que os jornais, a rádio e as
televisões começaram a meter-se no caso tudo
mudara de figura. A decisão da estátua, os retratos
nos jornais, as reportagens das rádios e os directos
com a cara chapada do Afonso a entrar nos lares
portugueses fizeram logo pender a balança a seu
favor. Afonso era agora o génio favorito para a
imensa maioria. Estavam com ele os jovens, a maior
parte das mulheres, o regedor, os partidos políticos,
a maior parte dos homens, só o padre ainda não
sabia bem para que lado cair, mas este também
cairia para um lado qualquer sem problemas de
maior, alguém o ouviu dizer que na inteligência do
Afonso habitava a infinita sabedoria de Deus, pronto,
também este já caiu para o lado do Afonso.
Afonso começa a dar mostras de grande cansaço.
Os inimigos de ontem, amigos de hoje. As juras de
amizade eterna fizeram-no sentar no pinhal em
meditação. A amizade, mas como é isso?
Bem sabes isto e mais aquilo, lembra-te de mim
quando tiveres a estátua, se fores almoçar com o
Presidente mete-lhe uma cunha, a minha Aninhas
está a precisar de um emprego, um tal senhor
precisa de mais um favor do partido para consolidar
não se sabe o quê, vê lá isso com o deputado fulano
de tal, e mais isto e mais aquilo, era um nunca mais
acabar de pedidos, cunhas, lembranças, até orações
lhe deitaram lá em casa. Havia também uma grande
colecção de benzeduras para distribuir pela aldeia,
queres ver que ainda se voltam contra o Afonso, hoje
tudo contra o padre e a favor do Afonso.
A velha Felismina ia ruminando a sua vingança. Ah ele
é isso, onde já se viu uma coisa destas, não tarda
fazem-no santo mesmo nas minhas barbas, salvo seja,
não, não pode ser. Gente desmiolada!, reuniu as
comadres lá em casa ao serão, nada como antigamente,
faltavam já uma data delas, algumas desculparam-se
com uma ou outra doença sem importância, já se vê,
logo lhes diria a essas desavergonhadas e ia congeminando
o seu plano, pensando na terrível vingança que está
reservada aos cobardes, são uns cobardes, não podem
ver uma televisão mudam logo de opinião, ou de partido,
está bem de ver. Mas um plano bem gizado não se compadece
com improvisações. Começou a estudar todos os pormenores,
o abc, a cartilha maternal, leu quase tudo àcerca de como
ser capaz de levar o rebanho ao redil já que o próprio padre
se transviara. Disse: esta noite já não vou à capela, nem
passo os paramentos do padre e na missa logo verão o resto.
Aconselhou-se em tudo quanto era sítio, só não perdoava
a traição do padre.
Afonso mantinha-se no seu lugar, ia e vinha carregando os
seus santificados baldes de água que as covas bebiam
sôfregamente, inovara, devido ao perigo da poluição
deixara de se abastecer no rio, decidira agora abstecer-se
directamente no chafariz da aldeia, um furo com mais de
100 metros de profundidade garantia-lhe a pureza
indispensável para o cumprimento rigoroso da sua tarefa.
Era um trabalho cada vez mais árduo, mas ganhara
cambiantes diferentes: o povo fazia alas para o ver passar,
heróico caminhante de suor em bica, esforçado e delicado
cavalheiro destas minhas aventuras, quem o pudesse saber
lá bem do cérebro qual o segredo para esta tenacidade,
este vigor, este peso na terra, esta dor atirada à consciência
da aldeia, à inúmera multidão dos medíocres sem fé nem
entendimento, inacreditável espectáculo humano de
facúndia, horas e horas de esforço, até as televisões
apareceram a filmar o Afonso, que logo avisara por hoje
O.K., para a próxima levam estas máquinas de volta, pois
tenciono exigir o meu direito ao silêncio total, ouviram
seus escriturários do terceiro milénio? Não tinham melhor
para enviar cá seus bestuntos?
A velha Felismina em conluio com a mulher do Cu à Vela
resolveu fazer uma promessa: a Senhora de Fátima é que
iria decifrar o que estava ainda por decifrar.

(J.A.R.)

Comments:
" A Paixão é meu destino, meu final e meu começo"

Maria Teresa Horta


Beijinhos embrulhados em abraços
 
Li. E dum só fôlego (olhe que não é fácil). E gostei.
Pois é... Os afonsos...

zl
 
Li. E dum fôlego (olhe que não é fácil). E gostei.
Pois é!... Os afonsos!...

zl
 
Olá Sonhadora!Obrigado:)
Beijinhos e abraços!
 
Caro Zé Luís,

Saiu em duplicado o seu comentário!
A culpa, como calcula, só pode ser do Afonso!...
Um grande abraço!
 
A questão do duplicado é porque o "Zé Luís" (posso tratá-lo assim?) é como eu e sente tudo a dobrar.

Acontece-me muito, tal a intensidade da leitura.
Também gostei Zé.

Um abraço!
(quase de partida)
 
Ná, aqui há gato. Cá para mim estão todos seduzidos pelo "sacripanta" do Afonso. Estão agarrados.
O verso de Maria Teresa Horta, com a paixão grafada com maiúscula, ou seja, personificada,
é muito bonito.

Um abraço para o Zé, para a Alex e para os restantes comentadores. Vão aos Santos Populares, se puderem, e divirtam-se!

Manuel Barata
 
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