Wednesday, January 03, 2007

 
Afonso saiu mais cedo que o costume do seu tugúrio. Aparou
a sua enorme e esbranquiçada barba, levantou os braços
como quem se espreguiça e disse: isto é que está um ano
de grande abundância. Disse: a fruta começa a amadurecer,
as verduras aparecem apetitosas e até mesmo se vêem aqui
e ali apetitosas raparigas em flor. Disse também: não sejas
guloso. Disse ainda: para castigar este corpo maldito nada
como um banho de água fria no rio. E foi nessa direcção que
se sumiu.
A velha Felismina continuava na dela: umas rezas e benzeduras
resolveriam o problema do Afonso. Mas como obrigá-lo se o
espírito que o anima dá mostras da maior das fraquezas e
misérias jamais observadas sobre a terra. Só se pode curar um
doente desde que se possa obter a sua colaboração. O que
não é o caso. Ora vejam: fora daqui, gritava o Afonso, absoluta-
mente fora de si, fora daqui, já disse. Nada a fazer, pois. Foi
então que com a mais espantosa voz jamais ouvida na
floresta, o Afonso me chamou e disse: não digas a ninguém
que eu existo. E sem qualquer explicação obrigou-me a aceitar
uma carta para a posteridade que rezava assim:

"Amigos,
Bem sei que a hora não é propícia a grandes cometimentos.
Mas eu julgo-me tão predestinado como o voo da coruja
apesar da terrível conspiração de silêncio à minha volta.
Nenhuma das minhas ambições se realizou. As árvores na
floresta passam uma sede tremenda e da minha goela nem
falar posso. A sede é ancestral e tudo o que mais desejo na
terra é que os poços não sequem e os rios não parem de
correr.
Tudo o que ainda queria dizer-vos é que estamos rodeados
de gente sacripanta que morre de amores por tudo o que
é safadeza e maldade e cuja hipocrisia ultrapassa qualquer
hipótese de cura milagrosa. Nada a fazer, eis a sábia
conclusão deste vosso humilde criado. Humilde no trajo
e no entendimento, já se vê.
Na minha opinião tudo tem um fim e o fim de tudo só pode
ser um, o amor acima de todas as coisas, amem-se então
uns sobre os outros."
Assim dizia a carta entergue pelo Afonso, com o pedido
não respeitado de que o deixassem em paz. Veio uma
ambulância e levou-o. Neste momento não se sabe
ainda qual o destino do Afonso: um hospital, uma prisão?

Comments:
Este seu texto fez-me lembrar uma crónica que li já há tempos do José Eduardo Agualusa, em que a certa altura ele conta uma outra estória: a da chuva da loucura, que um dia cai sobre uma aldeia de camponeses, e que não atinge apenas um homem, que nesse dia não saíra de casa. Todos enlouquecem, menos ele. É o mesmo que dizer que só ele enlouqueceu. Depressa se atirou a um poço. Às vezes parece que é esse o destino perverso da humanidade: aqui e ali subsistem alguns lúcidos, no meio da insanidade geral.

E quanto ao resto, não se preocupe. Não estava à espera que lesse aquele calhamaço de enfiada! ;)
 
Olá, Papu:)

Começo pelo fim, já comecei a ler e devo dizer-lhe que estou a gostar muito! Continuarei a dar notícias!

Não li a crónica do José Eduardo Agualusa, mas é dos meus favoritos.

Este meu "Rio do Esquecimento" merece-me um carinho especial, penso que foi onde arrisquei quase tudo, o estilhaçar da fronteira dos géneros literários, a forma como são possíveis diversas leituras, com alguns sinais que estão no livro...como pistas deixadas ao longo do caminho que o leitor escolherá. Bem, mas que sei eu hoje de um texto que escrevi há 20 anos? Sei que não envelheceu com o autor, o que me parece bem.
Quanto à sua leitura...é isso mesmo.A mediocridade geral vai arrastar-nos fatalmente para a insanidade da imensa maioria.
A ínfima minoria será suficiente para aguentar a nave? Como sempre só posso ter dúvidas e nenhuma certeza!Hélas...
 
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