Monday, December 18, 2006

 
Afonso deitou olhos à vida e deu-se conta da sede ancestral
dos eucaliptos e dos pinheiros que rodeavam a sua velha casa
onde dificilmente o pão e o vinho chegavam para matar a fome
ancestral. Descobriu uns velhos caldeirões e disse: agora não
é tarde nem é cedo. Vamos à obra. Que se lixem os cálculos
mas sede é que esta floresta jamais há-de ter. Disse: o que
me dava muito jeito era uma enxada; disse e fez. Mãos ao
trabalho que se faz tarde, é uma pressa dos demónios que
me impele.
Quantos pinheiros e eucaliptos não importa. Escavou
pacientemente em redor das árvores, ajeitou os velhos
caldeirões e partiu em direcção ao rio.
Tarefa ingente e ciclópica para corpo tão mirrado pela fome.
Mas sede, não. Sede, nunca a hão-de passar estes pinheiros
e eucaliptos. Andou assim bastas horas, para trás e para a
frente, uma fé impunha-lhe este sacrifício. Deitou água, muita
água na floresta.
Passou a Felismina, velha de trabalhos e canseiras e disse:
ó Afonso, nunca tal vi regar os pinheiros e eucaliptos. Meta-se
na sua vida, senhora, pois não hei-de querer saber da sua
opinião, cuide bem do seu gado, deixe-me a mim em paz. E
Afonso na curva do rio, carregado com os velhos caldeirões
cheios de água, repetia sempre: sede não hão-de passar.
Foi então que se lembrou de uma sede ancestral, pegou no
garrafão, e levantando-o aos céus abençoou-o em nome do
pai e do filho e disse: toma e bebe pois a tua sede jamais será
saciada. E de novo se fez ao caminho do rio e já com os velhos
caldeirões carregados de água ia pensando, porra, que sede
não hão-de passar estas frondosas árvores dos meus tempos.
Andava nisto quando a velha Felismina resolveu andar a
dizer de casa em casa, olhem o Afonso anda a regar a floresta,
juntou-se o povo no adro para tentar perceber as razões
de tão estranho procedimento. O que terá acontecido ao
Afonso? Talvez o padre possa fazer umas rezas especiais,
só se for a bruxa da montanha azul, seca e estéril, nada se
passa de anormal com o Afonso, foi mau olhado certamente,
nisto de horas e horas de discussão fez-se uma súbita luz
e nessa altura precisa nasceu o filho da mãe, deu à luz em
má hora, coitada da mãe, qual coitada qual caralho, o Afonso
está bem, disse o médico que resolveu fazer naquele momento
um sinal da cruz, só o padre se mantinha na dele, coisas de
Deus e do Diabo, pela certa.

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