Sunday, November 26, 2006

 
..........42 CANTO A WALT WHITMAN


Para a Alex
Para o Manuel Barata


Ah, velho Walt Whitman, por que carga de água me lembrei
de ti agora que um pássaro metálico penetra o espaço e eu
viajo com a noite e o lento respirar de um coração cheio de
medo. Qual o horror, afinal?
Penso num espaço azul e na infinita solidão desta ave alada
e noctívaga. Será da noite a terrível evidência destas sombras,
destes vultos igualmente solitários em que busco um
sorriso, um sorriso apenas, para que te esqueças de nós um
pouco mais tarde. Ó velho patriarca, estas exóticas criaturas
irreais para onde me conduzem? Qual a possível chave para
a decifração desta tortura? Ouves o silêncio, o vago odor
destes corpos cansados, a que frágil distância me encontro de
ti e dessa bem amada Nova Cidade dos Amigos? Ouve-me:
estas profissionais mecânicas e sofistificadas quantas vezes
repetem o ritual das máscaras? Quem as poderia inventar
senão uma qualquer partícula fugida do Cosmos e que logo se
sentou no teu colo de sábio mensageiro?
Descubro a tua mão no meu ombro e tento sair do labirinto.
É este o elo forte que cada vez mais me prende às coisas:

Eu sou aquele que sofre com amor,
A Terra gravita, e a matéria não atrai a matéria
sofrendo?
Assim o meu corpo atrai todos os
que encontro ou conheço.

Envaideces, claro. Logo a seguir a tua voz de Profeta murmura:
caminha em frente, talvez se perfile neste desgraçado
horizonte um novo mundo.
Dizes com a tua sábia voz: não penses por agora na morte.
Ei-la por aí à solta, é a dona da noite cheia de chacais e de répteis.
Recordas-me os mais fortes elos: os que são carne e espírito
da minha carne e da minha alma. Viajam também comigo,
partilham uma solidão e uma dor que não tem mistério
nenhum, uns vagos castelos de areia inundados de pirilampos e
insectos, até mesmo os cheiros marítimos e o vento a silvar
entre os plátanos. Um dia todos me pertencerão, um dia não
muito longe, não muito perto, meu amigo Ruy Belo vem daí
connosco, quantas viagens interrompidas, quantos já
desistiram de vez?
A vida a dizer-te: eis o Índico, eis Walt Whitman, o Profeta
amado e possuído por machos e fêmeas em todo o planeta:
ei-lo de pé, firme como uma rocha, forte como o carvalho.
Por que carga de água me lembrei de ti aqui na costa oriental da
África agora que os negros corvos voam baixo nestas longas
noites africanas e eu me revejo nas tuas sofridas e épicas
palavras de puro sangue e esperma, meu velho, sei que a tua
esperança tem a ver com o branco no branco. Para lá
caminho embora saiba ainda de esperas ânsias e dores. Meu bom
Pai, lembra-te que a força das marés tem o peso cósmico e
astral e nada as fará recuar. Quem estará disposto a desistir?
E a quedar-se silencioso ao longo deste caminho de espinhos
e cânticos de tambores a anunciar a derrocada dos velhos
impérios? Por aqui estou, bem vês que há água a brotar dos
meus olhos um pouco cansados e vagamente absortos e
pensativos, vem comigo velho Whitman, dizem-me agora que
tens lugar no avião:

Rola através do meu canto com toda a tua música selvagem!
Com as tuas lanternas oscilantes na noite,
Com o sopro medonho, que retine e rola,
Como um tremor de terra, acordando o mundo,
Completa é a lei de ti mesmo; segues infatigavelmente
a tua vida.
( A doçura indolente não é própria de ti, nem o chorar
das harpas, nem a monotonia do piano),
As colinas e as rochas fazem ecoar teus gritos estridentes,
E tu voltas a lançá-los para as pradarias vastas,
através dos lagos,
para os livres céus,
alegres e fortes...

Talvez pudéssemos beber álcool pelo mesmo copo e falar
de estrelas, pássaros, erva-doce e sei lá que raio de coisas
nos subiriam à cabeça lá por cima. Não vens, já sei, estás já
no mais puro e certo de todos os repousos, vagamente absorto
e contemplativo, porra que nem me deixaste falar desta
impetuosa corrente do Índico e da sensualidade destas
mulheres e flores. Falo de flores e de mulheres, por que haveria
eu de falar de outras coisas se nem sequer me apetece falar
de outras coisas! Vem daí, não te desculpes, não inventes
razões, nenhuma força hercúlea te vencerá, como muito bem
sabes, meu velho sábio. Espero ainda apresentar-te aos meus
amigos nessa tua gloriosa Cidade, que mais posso fazer? Um
pobre homem só e triste não passa de um pobre homem
solitário. Falas longamente da grande solidariedade sob as
estrelas e eu digo-te: sim, não, talvez. Falas longamente das
grandes amizades e eu digo-te: sim, não, talvez. Falas
longamente dos garndes amores e eu digo-te: sim, não, talvez.
Falas longamente da vida e eu digo-te sim: mulher, homem,
criança, ave, flor, vento, água, fogo, pão, ternura. E acrescento:
velho Whitman, meu Pai e meu irmão, levanta-te e caminha,
estou agora à tua espera aqui no Índico, se preferires alugarei
um barco e falaremos do mar e da pesca, das histórias destes
homens curtidos pelo sol e o vento, da vida destas mulheres
que carregam fardos e crianças, dos namorados, dos mortos,
sim, já que são sempre boa companhia, como tu, de pé e forte
como o carvalho, que sempre me obrigas a caminhar em frente!

(J.A.R.)

Comments:
É um grande texto, Zé. Obrigado pela dedicatória.
Um abraço.
 
José,



Estou sem palavras.
Faltam-me as palavras e emociono-me por terem chegado as suas numa hora tão ... acertada. Pelos vistos, não é apenas um amigo seu que o sabe ler, o José também sabe, e mais, sabe, lê e em silêncio, pelas horas mais silenciosas da noite.
É uma partilha muito bonita esta. E tantas as vezes que me esqueço que não tenho que ser o passaro metálico, basta-me talvez ser humana. Somos todos. Que bonito Zé, que texto bonito.

e que gratidão a minha, por ter lido estas e outras palavras que chegaram até mim de uma maneira tão delicada.

Obrigada, muito, muito obrigada.
Aceite um abraço,
um abraço sentido.

Gosto muito dos seus textos, venho lê-los em silêncio também e o José sabe dos que mais gosto, do quanto me faz bem lê-los e deixar-me envolver nas suas "pinturas" literárias.

Um abraço também ao Manuel Barata!
 
:)
A vida é mesmo assim, para ser agarrada com unhas e dentes.
 
Manel,
Obrigado:)
Um grande abraço. Até breve!
 
Olá, Alex:)
Muito, muito obrigado!
Fico contente por ter alguém do outro lado a ler, a ler-nos...É muito bom bom poder partilhar este espaço, estas palavras que posso deixar como um tributo à amizade.
Um grande, grande abraço.ikuhelum
 
Olá, Alex:)


Bem digo eu que a informática me surpreende. Não sei como aparece no meu comentário anterior este ikuhelum, mas deve ser amigo, pela certa!...
Um abraço!
 
Pelos vistos a "doença informática" que me assola de quando em vez, vai ganhando novos adeptos...
O José Luís Ferreira pediu-me para colocar este seu simpático post:
"CANTO A WALT WHITMAN"
Esperei muitos meses para poder ver (e ter) este belo poema.
Ouvi-o, dito pelo próprio ZR, aquando da "tertúlia" no Museu da Resistência (Cidade Univ.) em meados de Março do ano passado.
Se o velho e grande poeta americano foi quem "introduziu uma nova subjectividade na concepção poética e fez da sua poesia um hino à vida"-tão falado nesse fabuloso filme, "O Clube dos Poetas Mortos"-pois deixou-nos um bom herdeiro nesta "peça", carregada de mensagens e simbologia.
Mas valeu a pena esperar.
Obrigado e um abraço amigo do
Zé Luís

Meu caro Zé Luís,

Aquele abraço e o Obrigado do
ZR
 
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