Sunday, July 20, 2008

 
"OS AMIGOS


Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só pedia
a liberdade;
por mais amarga."

Eugénio de Andrade, "Poemas
de Eugénio de Andrade", Seara Nova/
Comunicação, 1981

Tuesday, July 08, 2008

 
"O TEMPO E O MAR


Era um homem, a sombra de um homem e
caminhava para o mar.
Estas pegadas
são o obscuro rumor do tempo
e o tempo é uma vara oblíqua nas mãos de deus.
Que fará um homem com as dores do mundo,
com a última gota dos cálices ao lado da morte?
Reconstruir o rosto da amada,
dar vida à sua silenciosa vida?
Matar,
no súbito ardil do outono, os vestígios de uma
palavra secreta?
Há uma cidade profunda onde em profunda água
ela o esquece.
Quem para o mar caminha
leva consigo a maldição das ilhas como um
lírio quebrado, uma ânfora de pólen,
um adeus."

In José Agostinho Baptista, PAIXÃO E CINZAS,
1992, Lisboa, Assírio & Alvim

Saturday, July 05, 2008

 
"Um Homem

Um homem trabalhado pelo tempo,
um homem que nem sequer espera a morte
(as provas da morte são estatísticas
e não há ninguém que não queira o trunfo
de ser o primeiro imortal),
um homem que aprendeu a agradecer
as esmolas modestas dos dias:
o sono, a rotina, o sabor da água,
uma insuspeitada etimologia,
um verso latino ou saxão,
a memória de uma mulher que o abandonou
há tantos anos já
que hoje pode lembrá-la sem amargura,
um homem que não ignora que o presente
já é o futuro e o esquecimento,
um homem que foi desleal
e com quem outros foram desleais,
pode sentir de súbito, ao atravessar a rua,
uma misteriosa felicidade
que não vem do lado da esperança
mas sim de uma antiga inocência,
da sua própria raiz ou de um deus disperso.

Sabe que não deve encará-la de frente
porque há razões mais terríveis que tigres
que lhe demonstrarão a sua obrigação
de ser um infeliz,
mas recebe humildemente
essa felicidade, essa rajada.

Talvez existamos pra sempre na morte,
quando a poeira for poeira,
essa indecifrável raiz
da qual irá crescendo para sempre,
equânime ou atroz,
o nosso solitário céu ou inferno."

Jorge Luis Borges, Obras Completas, II Vol.,
1988, Teorema, Lisboa

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