Thursday, July 26, 2007

 
Afonso fez as pazes com a velha Felismina, concluiram
sabiamente os leitores, fica mais descansado o narrador.
No entanto, nem tudo é assim tão linear neste mundo
de Cristo. Após aquele santificado acto cada qual foi
à sua vida. A velha Felismina, não tão velha como isso,
ora bem, regressou para a sua casinha em fervorosa
meditação, pensando na promessa feita à Senhora de
Fátima com a mulher do Cu à Vela à ilharga e iniciou
a preparação para o dia do juízo, o momento de enfrentar
o padre na confissão.
Afonso recolheu ao seu tugúrio, espantado com a série
de coisas boas e más que protagonizara em tão curto
espaço de tempo, pensava: agora com o povo do meu lado,
é altura de dar passos cada vez mais seguros na conquista
daquela sabedoria que nos tem de pé, tão fortes como
rocha granítica. Os perigos que nos rodeiam são cada vez
maiores, confessou ele ao seu mais dilecto amigo quando
foi descoberto a cavar enormes trincheiras ao redor da
sua velha casa. A areia acumulada fazia lembrar as ameias
de uma fortaleza. Uma massa imponente ali estava prestes
a ruir como um castelo da infância à beira de inacreditáveis
ravinas. Ficara apenas uma estreita passagem para a sua
velha casa de adobe e barro, disse: os perigos que espreitam
o homem do século XXI são cada vez maiores, a guerra e o
seu cortejo de horrores, a globalização da cupidez, a
servidão dos jornalistas, uma excessiva estupidez na
consciência humana, o medo corrói-nos as entranhas, o
napalm, as guerras químicas, os mísseis, as bombas
nucleares, o progresso posto ao serviço da morte, a miséria
espiritual, a aurea mediocritas...Para que serve viver num
mundo destes? Assim se exprimia o Afonso tentando
justificar as trincheiras erguidas ao redor da sua velha
casa.
Tudo fica sempre por decifrar, dissera o narratário.
Afonso deitara-se à espera que a tempestade amainasse.
Tinha consigo a velha telefonia, uma ovelha, um pirilampo.
Ao anoitecer recortava-se nitidamente no horizonte
O voo da Coruja.

Fim

"Acabei. Do sono que nos deixou, algum tempo, no fundo
de um táxi, fui o primeiro a despertar, doente... o resto
é ironia, longa espera da morte...".

Pierre Angélique, Divinus Deus

(J.A.R.)

Wednesday, July 25, 2007

 
rio do esquecimento rio do tempo que nos coube
em sorte do sopro das corujas no sótão da velha
casa abandonada na floresta rio de todas as águas
límpidas águas da minha memória quem impedirá
que a tua mão venha poisar nestes meus ombros
abandonados no cais...chegada? partida? nunca
ninguém inventará todas as dores dos inúmeros
silêncios agarrados ao velho pelourinho rio do
esquecimento fronteira da morte e da vida diz-me
das carícias da minha amada nesta noite de trovoada
raios faiscando os céus um deus zangado e vingativo
assusta o meu amor...ousarei afrontar a tempestade
para sossegar a minha amada, embora saiba de uma
queda no escuro de uma imensa bebedeira de um
velho vagabundo imprecando a cidade dos homens
rio que separas a morte da vida para onde correm
as tuas formosas águas?

(J.A.R.)

Tuesday, July 24, 2007

 
Cresces na noite como a açucena, dormes comigo,
que fizeste, fumei uma passa, é psicológico, não me
fez nada. Ficas em casa aguardando o resultado da
autópsia, excesso de memória, cada qual inventa
razões, os filhos da puta da polícia podiam ter
esperado um pouco mais, dispararam sem um
mínimo de escrúpulos, assim se morre no país de
Abril, onde a glória?
Este livro nem vale a vida simples da aurora vermelha
antes do amanhecer, cruzam-se as conversas, e a
custo rememoras o sentido único, estudaste mal os
sinais, isso é o principal, não devias ter cruzado
assim as mãos. Falavam de tudo assustadoramente
lá no cimo da aldeia. Que vão voltar quase todos os
dias é mais que certo. O desemprego alastra onde
outrora correra o mel e o leite. Que é feito da Maria
do Mar? Tantas rezas, Senhor, pus mesmo agora uma
vela no Altar da Nossa Senhora da Ajuda, tantas
preocupações me dás, o pior de todos, valha a verdade,
já nem as mulheres se aproveitam e os filhos coitados
que nem à missa vão, mas sim, claro, continuo à espera
de um milagre.
Dizia assim o jovem anónimo: "Querida mãe: Não sei
se esta te irá encontrar curada eu acredito que ainda
nos veremos, a guerra ainda apenas começou e já me
apercebi que os turras não têm bombas nucleares, já
me falaram numas balas perdidas no mato e aqui o
amigo que está comigo na cantina já me falou que as
ouviu bem ao ouvido e diz que não houve grande
problema. O andar no meio do mato até faz bem às
constipações, há um pequeno problema com os
mosquitos mas com o tabaco isto vai passar, acredita-me.
Quanto a rezas fica descansada pois temos padre
privativo para o que der e vier e que até fala muito bem
e diz que Nossa Senhora de Fátima nos há-de valer
para todo o sempre, amén. Se me mandasses uma medalha
é que te agradecia. Não temos as nossas mulheres, mas as
pretas cá não faltam e nas faltas servem as madrinhas
de guerra, que me escrevem e muito me animam. Além
de que não te esqueças que existe o movimento nacional
feminino que sempre nos dá um grande consolo.
Por hoje fica descansada e recebe-me nos braços que muito
te amo. Enquanto houver portugueses, etcétera.Manuel."

(J.A.R.)


Saturday, July 21, 2007

 
Há notícias frescas do Engº. Ferreira de Magalhães, filósofo
desempregado em férias forçadas no reino dos algarves,
disse-nos que por nada deste mundo trocaria a sua residência
habitual por esta confusa Babel. Tinha vivido com tão boas
intenções, alguns livros para melhor poder acompanhar as
tendências estéticas da época e afinal conclui que o que lhe
faz imensa falta são gramáticas e dicionários de inglês, francês,
alemão, o diabo que os carregue a todos que já mal se ouve falar
a língua dos nossos maiores, quanto a preços nem falar, e quem
tem casas e terras para vender aos estrangeiros? É vender
senhores, é vender, antes que acabe!
Em terra e no mar é agora mais imperioso do que nunca dizer
que ainda se salva o branco das casas e o sol doirado deste belo
Julho. E as mulheres, claro! Mas deste tema complicado não
deseja o nosso Engenheiro aprofundar as lições. Conhecimentos
supérfluos, coração ao alto, forte maresia no fim de tarde marítimo,
um engate com ligeiro toque a álcool, uma discoteca às escuras
rente às paredes, algumas apalpadelas, Deus meu, que pena
um homem não ter tempo, todo o tempo às escuras na noite,
um barco carregado de estrangeiras, uma cruzada, um cruzeiro,
uma cruz sob estes frágeis ombros de feiticeiro vagabundo,
perdido no Sul, com alguma sorte ao amor, que pena não ser
vingativo, dizia o marido da outra que não conseguia acertar nem
por nada, com esforço lá foi, pronto, ponto final.
Dizem que o Engenheiro tem uma sorte dos demónios. Bela sorte,
a ver pelas companhias, ah seu grande mulherengo, afinal bem
merecia ser desancado seu grande malandro.

(J.A.R.)

Thursday, July 19, 2007

 
-Há falta de escriturários, corre tudo para o jornalismo,
dissera o Engº. Ferreira de Magalhães em homenagem
a Karl Krauss.
Que tenciona fazer?
"Vou hibernar durante uns anos", assim se exprimiu o
Afonso quando inquirido por um jornalista de um diário
de grande expansão internacional.
"Não percebo nada disso", confessou humildemente o
senhor jornalista. Por isso tinha toda a razão pelo seu
lado o Afonso. Que chatos de merda! Colocado em apuros
pelo narrador disse então que já acreditara muito mais
nos livros, gosto é das imagens da violência que está
sempre a mais. Viste o ar do dono do café, retornado
sem glória, o Império todo fodido de repente, vieram sem
camisa e nem dá para saber o que estava dentro dos
caixotes, para a próxima já sabem vão todos à revista,
uns brincalhões é o que é, a incompreensão é terrível,
ninguém está inocente.
"Não salvam os filhos e querem salvar o país, angustio-me
só de pensar nestes pais, a responsabilidade é cada vez
maior, mas de quem será a culpa, se houver culpa?"
"Sabes lá o que custa ser jovem; não permitirei que
alguém diga que os 20 anos são a idade mais bela da vida",
rematara o Engenheiro cheio de saudades do tempo em
que lia Nizan.
Afonso assistia a este diálogo algo contrariado. Em
boa verdade neste momento o que lhe apetecia mesmo de
verdade era emborrachar-se, entrar direito ao pipo,
descobrir o local mais apropriado, ajeitar-se o melhor
possível e abrir o gargalo até ficar saciado...
"Lá se embebedou o estúpido do personagem", disse o
narrador agora armado em chui do Afonso. Este, contudo,
cambaleando entre o arvoredo, fez sinal com a mão para
que o povo o deixasse marchar em sossego apenas
com os olhos levemente enevoados, deu início a uma
terrível dança que colocou toda a aldeia em polvorosa.
Sozinho no adro, virando à direita e à esquerda, implorando
os céus, embicou direito à Igreja, apalpou a porta para que
não acontecesse nenhum desastre e ali bem ao centro
encomendou a Deus a mais espantosa de todas as punhetas.
"Ah, desgraçado!", foi o grito da velha Felismina, a
privilegiada testemunha deste sagrado acto, graças a Deus!
Caindo em si, o Afonso dirigiu-se para a sacristia sempre
acompanhado pela Felismina, não tão velha como isso, ora
bem, e ali mesmo juntaram os corpos em tão boa harmonia,
benza-os Deus que tão bem os consolou, estava vingada a
velha Felismina, ah eles queriam festa pois festas terão, o
padre já sabe agora que a vingança será terrível.

(J.A.R.)

Saturday, July 14, 2007

 
Haverá novos horários para os barcos, a ilha é do
outro lado do mar, ali me quedarei qual Robinson
pinga amor, não farei projectos e rasgarei todos os
planos do próximo livro, um século é tempo de mais,
não sei quanto tempo ainda resistiremos, todas as
promessas irão para o caraças, perder-me-ei em ti,
as curvas e o resto, leia livros, o país precisa muito,
muitíssimo.
Olhe por favor tome atenção aos meus pedidos, vou
elogiar os olhos desta mulher e o seu ar triste, desculpe
a franqueza, sabe de quem é a culpa, do cheiro do mar,
tenho-o na cabeça para sempre, mas não vai passar,
olhe só filhos são cinco, um de cada uma, dá-lhes para
isso, um filho em cada uma, não sei se vou ficar aqui.
A consciência é o teu único juiz.

Tuesday, July 10, 2007

 
Um velho visionário perdeu-se algures
no vasto mundo do esquecimento nunca
ninguém lhe descobriu o paradeiro.
Vagabundo porque não me levas contigo?

(J.A.R.)

Sunday, July 08, 2007

 
ah a dor deste momento em que as palavras não são
suficientes para lavar a imundície da cidade ah o caos
de um tempo miseravelmente morto ah a alegria dos
amantes remando no rio do esquecimento contra a
corrente rente à muralha ah a dor dos amigos perdidos
para sempre um terrível ciclone os levou e ninguém
me dá novas da sua morada pequenos deuses em
fúria vão tragando aqueles a quem amamos quem
nos dirá de nós a sorte de um espaço de carícias e
abraços quem ditará as leis do amor?

J.A.R.)

Thursday, July 05, 2007

 
A teia não é a via segura para o amanhecer, a aurora
é sempre um limite para o teu reencontro comigo,
estás em vantagem, claro, mas teremos ainda uma
longa aprendizagem. Quando resolveres a questão
fundamental desse livro, espero dedicar algumas
horas à leitura do Giono para descobrir esse especial
recolhimento na província onde ninguém poderá
impedi-lo de pensar. Talvez parta com ele, mas a
província é um pouco longe, talvez fique por cá,
leio imenso, o livro que tenho à cabeceira? Muitos,
também um policial, está tudo dito, gostos não se
discutem, vale mais um gosto do que um desgosto,
a política cansou-me, é a poesia que me atrai, o
começo do verbo até que todo o amor do universo
esteja disponível para sempre. Estás disponível?
Estaremos disponíveis naquele único e inenarrável
momento do esquecimento?

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