Saturday, March 31, 2007

 
"estas orações separam a morte da vida rio da morte
e da vida rio do esquecimento onde fica o cais de
embarque? quantos saberão quantos esqueceram
tudo para sempre metáforas àparte com as palavras
mais simples haverá ainda que nomear o inominável
é urgente descobrir as estrelas no firmamento a terra
continuará a girar até ao seu fim tal como sempre
desde o princípio do verbo é infinita a vastidão do
universo e pouco sabemos do futuro mesmo se tratamos
da esperança que é a última coisa a morrer no coração
dos homens esperamos a claridade esperamos o rebento
da flor a felicidade nos olhos de todas as crianças deste
mundo tão néscio inventámos até a alegria contra a
morte contra o tédio dizemos tédio como quem diz
sabedoria o preço a pagar é demasiado pesado para
quem está vivo morrer é não saber morrer é não querer
saber da morte que se insinua como um punhal doirado
as palavras ferem é impossível aceitar a imbecilidade
destas horas de frustração e cupidez"

(J.A.R.)

Friday, March 30, 2007

 
Do "Rio do Esquecimento":

"No hospital Afonso repetiaà exaustão que os tiros
que se ouviram não eram para valer, podiam estar
descansados, eram trabalho de campo, os cabrões
gozam contigo à grande, rebentam trotil e outras
merdas do género ao ouvido e depois dizem assim:
é só para ficares um homem a sério, etecétera,
etecétera. Metem-te mochila aos ombros, armas e
outras inutilidades, dormes em cima de calhaus
no meio da serra e já meio doido dizes ai a guerrilha
é o que faz falta, mas não, não é puto guerrilha, é a
puta da guerra, pintam-te a cara de preto por causa
dos terroristas que são todos assim, fora uns filhos
da puta de uns brancos que também são pretos e
dizem que estás a defender a civilização cristã e a
religião dos nossos antepassados e que é assim mesmo
que um homem se faz homem e agora o resultado
está à vista: Afonso está um homem! O médico acaba
de informar que após este discurso do paciente estão
dissipadas todas as dúvidas que ainda lhe iam na alma:
ficará internado até dar mostras de melhorar substan-
cialmente destes maus pensamentos.
Quanto ao padre, nada de especial, apenas as orações
do costume salvariam o Afonso. Mandou tocar os sinos
a rebate, ecoaram badaladas por vales e montanhas,
estremeceram ecos até às profundas, foi um longo
desfilar de pancadas celestiais, veio o povo todo,
o povo vem sempre se houver espectáculo, à frente
as criancinhas da catequese com as suas batas brancas,
depois os notáveis da paróquia com as suas opas vermelhas,
logo a seguir a Sagrada Congregação da Beata Imelda,
depois os de S.Vicente de Fora e de seguida todo o cortejo
dos pecadores locais, que como se sabe, são em número
alto, ah, veio também o sacristão naquele momento
com a imagem da Senhora da Ajuda e ditou para a salvação
do Afonso todas as rezas e santas canções conhecidas...
"Enquanto houver portugueses..." e assim se fez: abriram-se
as portas dos céus e um trovão enorme fez aumentar o
clamor destas boas almas. Apareceu a procissão de todos
os doentes da aldeia. Estava tudo em rezas prolongadas,
o Padre debitava cada vez mais orações e o povo erguia
os olhos para os céus aguardando o milagre que
tardava: a cura do Afonso para descanso de todas aquelas
almas bem formadas. A velha Felismina estava já com os
olhos em êxtase, mãos bem assentes no chão à procura não
se sabe bem de quê, o Padre por detrás, mas nada de vergonhoso
aconteceu naqueles santos lugares. Tudo se compôs novamente
quando o sumo sacerdote rezou alto e bom tom para quem o
quis ouvir contra raios, tempestades e trovoadas.
E assim toda a tarde e pela noite dentro. Quando esta já ia
adiantada e se temiam fortes trovoadas com todo o seu cortejo
de raios e coriscos, ouviu-se de novo a voz da velha Felismina
a pôr ordem naquele adro algo descomposto e a gritar aos
quatro ventos que lhe concedessem um minuto de silêncio para
propor uma coisa das mais simples e de resultado certo: nada
mais, nada menos, do que um telefonema para o hospital para
saber se todas estas rezas já tinham chegado ao entendimento
do Afonso. Mas o problema complicou-se quando percebeu que
o telefone não funcionava, que seria aquilo? Telefone cortado
por falta de pagamento, má ligação ou a bestunta da funcionária
não o tinha colocado bem no sítio?
Logo se veria quando voltasse a tentar. E tentou em boa hora.
Foi o próprio Afonso que atendeu. O hospital andava num
virote. Qual funcionária, qual caralho, resmungou ele, para que
servem as funcionárias senão para funcionar, esta está a limpar
o pó na sala de visitas, eu estou aqui a ver se falo com o Presidente
que está sempre ocupado e a Direcção está fechada no gabinete
cheia de cagunfa, pois isto é assim mesmo, com a gente ninguém
se meta e se quiserem meter já sabem qual o melhor sítio, ou ainda
não sabem, sei, dizia a velha Felismina, mas foi o Padre que se
lembrou de tudo, o povo veio atrás, o povo vem sempre atrás e não
é nada de espantar, mas então o que deseja, disse o Afonso, saber
das melhoras, quais melhoras, replicou, repenicaram então os
sinos para ajuntar novamente os crentes e a velha Felismina
disse apenas isto: acho que nada dá resultado. Porquê, disse o
Padre. Pois sabe o que ele me recomendou, não, então fique
sabendo, nem mais nem menos, reguem-me os pinheiros e os
eucaliptos. Viraram-se todos para a floresta e viram as árvores
inclinadas, de sede, ou a agradecer ao Afonso, nunca ninguém
jamais o saberá."

(J.A.R.)

 
Bom Fim de Semana!
Vou voltar ao "Rio do Esquecimento", esse meu livrinho que interrompi há já algum tempo!

Wednesday, March 28, 2007

 

 

Monday, March 26, 2007

 

Thursday, March 22, 2007

 
Para a Filipa Barata

"SIGNIFICACÕES DAS ERVAS AROMÁTICAS
MORALIZADAS ALECRIM CIÚME

Dizem do alecrim gregos autores,
Que foi um jovem, que morreu de amores,
Foi esta mutação maravilhosa,
Um raio ardente de paixão ciosa;
Amor, que assim encanta,
Matou o homem, e deu vida à planta,
É activo, e fogoso,
Que são condições próprias de um cioso,
Brota em flores azuis os seus queixumes,
A esse foram céus, e não ciúmes,
Trocando o coração, que tal encerra,
Pelo zelo do céu, zelos da terra.
Enganos do Bosque
Soror Maria do Céu (1658-1753)

In Natália Correia, Antologia da Poesia
do Período Barroco, 1982, Moraes Editores

E já que falamos de "zelos da terra", Filipa,
fico à espera que as Edições Alecrim floresçam
nesta Primavera, valeu?!

Tuesday, March 20, 2007

 
Boa Noite, está aí a Primavera (no calendário, pois!)
Dia Mundial da Poesia!
E vejam por favor o António Cardoso Pinto, no programa da Sic,
"Páginas Soltas", da Bárbara Guimarães.Um grande abraço,
António! Que saudades dos teus programas na Rádio...

Wednesday, March 14, 2007

 
"O mandarim ordenou-me lhe ensinasse
a desenhar um cavalo suspenso,
com a tinta proibida dos secretos ideogramas.

O mandarim era um homem medroso, soberbo,
perverso e ignorante.

Um sábio solerte e raro induzira-o a crer
que ao assim desenhar um cavalo suspenso,
no reverso granulado de um círculo
de folha de arroz,
feita por mãos molhadas de lágrimas
tantas e amargas,
era-lhe concedida a graça inexplicável
da imortalidade.

O mandarim desconhecia,
porque o sábio solerte e raro lhe não revelara,
que, ao cabo de indeterminado número de sextas luas,
as lágrimas tantas e amargas,
ocultas no coração da folha,
renasciam de tanta e amarga dor
e afogavam o cavalo suspenso."
Apólogo de Ma Yoan, pintor e poeta chinês, séc. XIII

In Baptista-Bastos, O CAVALO A TINTA-DA-CHINA,
1995, Edições Temas da Actualidade

Saturday, March 10, 2007

 
"Se nada existe, se tudo é vazio
Onde se acumula o pó?"
Houei-Neng

"Eu não sei se há progresso no meu trabalho, no
trabalho da minha vida. O que sei é que o meu
caminho se assemelha ao do monge budista: não
tem finalidade, anula-se a cada momento e o que
sobra é apenas o vazio, o vazio insuficiente, e há
que beber nesses vasos toda a água que não
contêm, os mistérios do mundo que já são outros,
e eu outro e não somos mais do que passagem e
comer uma maçã na tarde que cai é uma maneira
como outra qualquer de subir à montanha e
respirar o ar puro se trazes uma montanha
dentro de ti. Eu não sei se há progresso neste
trabalho, não aprendi ainda a arte de bem morrer
e, por isso, o desejo permanece e tem um peso terrível."

In Casimiro de Brito, ONDE SE ACUMULA O PÓ?
1987, Black Son Editores

Friday, March 09, 2007

 
" A flor é a obra prima de Deus.
Ao criá-la foi a Natureza
pródiga: criou-a num concílio de
amor, e depois...estendeu a sua
mão omnipotente de bênção, e aos
quatro ventos lançou a sublime
Criação.(...)".
M.Vieira Natividade

IN J.Vieira Natividade, JORNADA
A UM MUNDO DE BELEZA ETERNA,
1948, Edição do Autor

Thursday, March 08, 2007

 
" O POBRE B.B.

1

Eu, Bertolt Brecht, venho lá das negras florestas.
Minha mãe, quando inda andava no seu ventre,
Levou-me para as cidades. E o frio das florestas
Estará dentro de mim 'té que na morte eu entre.

2

Na cidade de asfalto é que eu vivo co'a sorte.
Desde início provido dos sacramentos de morte:
De jornais. E tabaco. E água-ardente.
Desconfiado e preguiçoso e, no fim , contente.

3

Sou amável pra as pessoas. Ponho um chapéu de coco
Na cabeça porque é costume andar assim.
Digo cá: São uns animais de cheiro estranho,
E digo: Não faz mal; o cheiro também me toca a mim.

4

Nas minhas cadeiras vazias antes do meio-dia
Ponho de vez em quando mulheres a baloiçar;
Contemplo-as descuidado e lá lhes vou dizendo:
Em mim tendes alguém com quem não podeis contar.

5

À noitinha reúno à minha volta homens,
Rodas de "Gentleman" uns aos outros vamos dando.
Põem-me sem cerimónia os pés nas mesas
E dizem: Vamos melhorar. E eu não pergunto: Quando?

6

Pela manhãzinha, ao dealbar cinzento, mijam os abetos
E os pássaros, seus vermes, desatam a gritar.
A essa hora bebo o meu copo na cidade,
Deito fora a pirisca e não em paz me vou deitar.

7

Geração leviana, vamos vivendo em casas
Que foram consideradas um dia indestrutíveis
(Assim nós construimos os caixotes da Ilha de Manhattan
E as antenas que divertem o Atlântico, tão sensíveis).

8

Destas cidades ficará o que as atravessou: o vento!
A casa alegra o comedor que em seguida a esvazia.
Sabemos bem que somos passageiros,
E o que depois virá não é coisa de valia.

9

O meu virgínia não se apagará-assim o espero-
Só de amargura nos terramotos que lá vêm,
Eu, Bertolt Brecht, que das negras florestas fui jogado
Às cidades de asfalto há tempos no ventre de minha mãe. "

In Bertolt Brecht, POEMAS E CANÇÕES, Selecção e versão
potuguesa de Paulo Quintela, 1975, Livraria Almedina

Sunday, March 04, 2007

 
"Saberemos cada vez menos o que é um ser humano."
Livro das Previsões

In José Saramago, AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE,
1985, Editorial Caminho

Saturday, March 03, 2007

 
"Da protecção ambiental depende a continuidade
da própria vida humana."
Samuel Benchimol

In Thiago de Mello, AMAZÔNIA, A MENINA
DOS OLHOS DO MUNDO, 1991, Civilização Brasileira

Thursday, March 01, 2007

 
"Celui qui regarde du dehors
à travers une fenêtre ouverte
ne vois jamais autant de choses
que celui qui regarde une
fenêtre fermée."
Charles Baudelaire

In Fernando Luís, HOTEL PIMODAN,
1987, Frenesi

 
"Nossa vida é uma viagem
no Inverno e na Noite.
Procuramos uma passagem
no Céu onde nada brilha.
Canção das Sentinelas Suíças, 1793

In Céline, VIAGEM AO FIM DA NOITE,
1989, Círculo de Leitores

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