Wednesday, January 31, 2007

 
"A História de um homem é sempre admirável"
Shakespeare

In António Botto, "Cartas que me foram devolvidas",
1940, Editora Argo, Lisboa

Monday, January 29, 2007

 
"Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira
leitura paciência, fundada em certeza de que, na
segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sob
luz inteiramente outra."
Schopenhauer

In João Guimarães Rosa, TUTAMÉIA, Terceiras estórias,
1967, Livraria José Olympio Editôra

Sunday, January 28, 2007

 
"Difícil é andar sobre o aguçado fio de
uma navalha;é árduo, dizem os sábios, é o
caminho da Salvação."
Katha-Upanishad

In W.Somerset Maugham, O FIO DA NAVALHA, 1974, Círculo de Leitores

 
"A avareza sórdida é um snobismo. A
ostentação é um snobismo. A profusão
excessiva é um snobismo.(...) No estado
actual da nossa sociedade é impossível,
por vezes, não ser snob."
W.M.Tchackeray, 1848

"O snob sente-se, por natureza, pouco
firme nas suas relações sociais. Por isso,
recorre ao snobismo como a uma massagem
do seu eu. Como ninguém tem bastante
confiança em si mesmo para que o seu eu
nunca precise de qualquer manipulação
externa, não há ninguém que não seja snob
de uma maneira ou doutra.(...) E não há
maior snob do que um snob que julga
poder definir um snob."
Russell Lynes, 1950

In Pierre Daninos, SNOBÍSSIMO, Círculo de Leitores, 1973


Friday, January 26, 2007

 
"De la musique encore et toujours
....................................................
Que ton vers soit la bonne aventure
Éparse au vent crispé du matin
Qui va fleurant la menthe et le thym,
Et tout le reste est litterature."
Verlaine

"Et c'est pourquoi ce livre ci (qu'il était peut-être
bon d'écrire) nous savons, toi et moi, a quels mysterieux
balbutiements le réduirait le tête-a-tête-et tout ce que
je n'ai pas dit, qu'il ne fallait pas dire. Et tu sais combien
de pages menteuses devront, pour des motifs de faiblesse
personelle ou de nécessité invencible, accompagner la
bonne page, celle que ce livre encore annonce et
ordonne-tu sais, tu comprends et tu pardonnes...".
Charles Morice

Balada da Neve

"Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Verlaine

A Vicente Arnoso

Batem leve, levemente
Como quem chama por mim...
Será chuva? Será gente?
Gente não é certamente
e a chuva não bate assim...

É talvez a ventania;
Mas há pouco, há poucochinho,
Nem uma agulha bulia
Na quieta melancolia
Dos pinheiros do caminho...

Quem bate assim levemente,
Com tão estranha leveza
Que mal se ouve, mal se sente?...
Não é chuva, nem é gente,
Nem é vento, com certeza.

Fui ver. A neve caía
Do azul cinzento do céu,
Branca e leve, branca e fria...
-Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
Os passos imprime e traça
Na brancura do caminho.

Fico olhando esses sinais
Da pobre gente que avança
E noto, por entre os mais,
Os traços miniaturais
Duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
A neve deixa inda vê-los
Primeiro bem definidos,
-Depois em sulcos compridos,
Porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
Sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
Porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza
Uma funda turbação
Entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza...
-E cai no meu coração.

In Augusto Gil, LUAR DE JANEIRO, 1997, Lisboa, Edições Ulmeiro


Wednesday, January 24, 2007

 
"Começo a crer que todo o acto sexual
é um processo que envolve quatro pessoas.
Voltaremos a falar deste assunto, pois
há muito que dizer a esse respeito."
S. Freud:Cartas

Há duas atitudes possíveis: o crime que
faz a nossa felicidade, ou o nó enredio,
que nos impede de ser infelizes. Pergunto-te,
querida Teresa, se é possível hesitar,
por um só momento, e que argumentação
o teu espírito fraco é capaz de descobrir
contra isto?"
D.A.F.de Sade: Justine

In Lawrence Durrel, JUSTINE, (Quarteto
de Alexandria-1), S/d, Lisboa, Editora Ulisseia

 
"Era a pura verdade e, embora a Bela Adormecida
tivesse um rosto lindo como uma flor, os cem anos lá
estavam, além dos dezasseis que ela tinha quando
adormeceu."
Agustina Bessa-Luís, A Bela Adormecida

"Compreendia que agora era ela que ia cair no
abismo. Viu que, quando as raízes se rompessem, não se
poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois
era ela própria o que ela agora ia perder."
Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos exemplares

In Adília Lopes, OBRA, 2000, Lisboa, Mariposa Azual ,Edições

Tuesday, January 23, 2007

 
"Na cidade, contam a história de uma grande
pérola: como um dia foi encontrada, como
um dia desapareceu. Contam a história de
Kino, o pescador, e de Joana, sua mulher, e
do filho Coyotito. E tantas vezes essa história
foi contada que se enraizou na memória de
todos. E, como acontece sempre com as
histórias que o povo guarda no coração, só
há nela bom e mau, preto e branco, generosidade
e malefício, sem tonalidades intermédias.
Como se trata de uma parábola, talvez
cada um possa descobrir-lhe uma moral
e encontrar nela a sua própria vida. Seja como
for, na cidade contam que..."

In John Steinbeck, A PÉROLA, 1977, Mem Martins,
Publicações Europa-América

Monday, January 22, 2007

 
Duas tantum res anxius optat: panem et circenses.
Juvenal, Sátiras
Populum Romanum duabus praecipue rebus,
annona et spectaculis teneri.
Fronton, Princ. Hist.
Omnis labor hominis in ore eius.
Eclesiastes
La destinée des nations dépend de la manière
dont elles se nourrissent.
Brillat-Savarin
Comer bem e dizer mal
é pecha de Portugal.
Popular

In Roby Amorim, DA MÃO À BOCA , Para uma história
da Alimentação em Portugal, 1987, Lisboa, Edições Salamandra




 
"Em geral, não é preciso tomar a viagem
à Arábia por uma viagem de prazer. Mas
quem desejar conhecer as nações estrangeiras
e quem, de regresso à Pátria, possa esperar
fixar ali a sua sorte, deve resolver-se a
suportar algum desgosto..."
(Carsten Niebhur, "Description de l'Arabie")

"Para os jovens que amam as suas comodidades
e uma mesa delicada ou que queiram passar
agradàvelmente o seu tempo em companhia
de mulheres, não é preciso irem à Arábia."
(Carsten Niebhur, "Description de l'Arabie")

In Paul Nizan, ADEN-ARÁBIA, Introdução
de Jean-Paul Sartre, 1967, Lisboa, Editorial Estampa

Sunday, January 21, 2007

 
"E, animado pela esperança de ser particularmente útil à juventude
e de contribuir para a reforma dos costumes em geral, formei a
presente colecção de máximas, conselhos e preceitos, que são a base
daquela moral universal tão adequada à felicidade espiritual e
temporal de todos os homens de qualquer idade, estado e condição que sejam, e à prosperidade e boa ordem, não só da república civil e cristã
em que vivemos, mas também de qualquer outra república ou governo
que os filósofos mais especulativos do orbe queiram discorrer."

Espiritu de la Biblia y Moral Universal, sacada del
Antiguo y Nuevo Testamento.
Escrita en toscano por el abade Martini con las
citas al pie:
Traducida en castellano
por un Clérigo Reglar de la Congregación de San
Caetano de esta Corte.
Con licencia.
Madrid: Por Aznar, 1797.

"Sempre que o tempo fresco chega, ou seja, em meados do outono, a mim, já sei, me dá a louca de pensar idéias do tipo excêntrico, como, por exemplo, gostar de me tornar andorinha para voar para os países onde haja calor, ou de ser
formiga para me meter bem dentro de um buraco e comer os produtos guardados durante o verão ou ser, ainda, uma víbora como as do zoológico, que estão bem guardadas numa jaula de vidro com aquecimento para que não fiquem duras de frio, que é aquilo que acontece aos pobres seres humanos que não podem comprar roupa com o caro que a vida está, nem podem aquecer-se por falta de querosene, falta de carvão, falta de lenha, falta de petróleo e, também, a falta de prata, porque quando se anda cheio de grana pode-se entrar em qualquer taverna e mandar-se uma boa grapa, que é preciso ver como aquece, embora não convenha abusar, porque é do abuso que vem o vício e é do vício que vem a degenerescência, tanto do corpo como das taras morais de cada qual, e quando se vai abaixo pelo pendente fatal de boa conduta, em todos os sentidos, já nada nem ninguém o salva de acabar no mais espantoso caixote de lixo do desprestígio humano e nunca lhe darão uma mão para tirá-lo lá de dentro, do lixo imundo no qual se contorce, nem mais nem menos do que se fosse um condor, que quando jovem soube correr e voar pela ponta das montanhas, mas que ao ser velho caiu para baixo como bombardeiro em picada por lhe ter falhado o motor moral! E oxalá aquilo que estou escrevendo lhe sirva a alguém, para que olhe bem o seu comportamento e que não se arrependa quando seja tarde e já tudo se tenha ido ao corno por culpa sua!"

Cesar Bruto, "Aquilo que eu gostaria de ser se não fosse o que sou" (capítulo: Cachorro de São Bernardo).

In Julio Cortázar, O JOGO DA AMARELINHA, 1982, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira (traduzido do original em espanhol RAYUELA)




Saturday, January 20, 2007

 
Aos meus amigos, a quem me lê

Os livros acompanham a minha vida desde menino. Ainda estou para saber como tudo aconteceu.
À partida nenhuma razão apontaria para este desfecho.
Não sei se os livros, todos os livros, me salvaram, ou me levaram à perdição...
Sei poucas coisas, sei que com poucas coisas se faz a felicidade
de uma pessoa...Aquela tarde de chuva, um passeio à beira-mar, um sorriso perdido no tempo, a tua silhueta no entardecer, o sol no horizonte, uma noite de luar...
E por isso falava de livros, todos os livros. O estranho fascínio
pelo cheiro da tinta quando as máquinas tipográficas arrancam os seus sons metálicos é indescritível! A leitura, as leituras, as epígrafes...coleccionador de epígrafes, poderia ser
também. E são elas, as epígrafes, que me proponho partilhar convosco a partir de hoje, à média de uma por dia. Convenhamos que não está nada mal... a ver vamos então!...

Encontro no Inverno com António Lobo Antunes

Com as aves aprende-se a morrer.
Também o frio de Janeiro
enredado nos ramos não ensina outra coisa,
dizias tu, olhando
as palmeiras correr para a luz.
Que chegava ao fim.
E com ela as palavras.
Procurei os teus olhos onde o azul
inocente se refugiara.
Na infância, o coração do linho
afastava os animais da sombra.
Amanhã já não serei eu a ver-te
subir aos choupos brancos.
O resplendor das mãos imperecível.

Foz do Douro, 18.1.2000

Eugénio de Andrade


"Los locos van libres por las salas y pasillos o
por las habitaciones de los hombres, sin que
ello inspire el menor recelo de evasión o
desorden. Incluso algunos de ellos,
pertenecientes a familias distinguidas,
acompañan a las visitas, hacen los honores de
la casa. Guardan las más suaves formas de
cortesía y buena educación.
Ullesperger, "Historia de la Psicologia y de la Psiquiatria
en España", 1854

In António Lobo Antunes, "Não entres tão depressa nessa noite escura",
2000, Publicações Dom Quixote



Saturday, January 13, 2007

 
Falavas da rapariga da tabacaria com um
grande e lúbrico entusiasmo, deitaste-a
no barco é o que diz outro dos teus
biógrafos mais atrevidos, mas não
tolerarei que a tua memória seja
conspurcada. Não a roubaste, não a
saqueaste: foi por ti desposada naquela
hora maior de todas as horas, o seu leito
é árduo e trabalhoso, não temas nem
desesperes. Falo aqui neste tom
desconfiado e desesperado. O tempo
mitiga as saudades, a virtude, o fluxo,
as qualidades, um homem activo e
insubmisso, uma mulher activa e
insubmissa, os fundamentos, os
alicerces, as fundações, a que se
afunda, o que se afunda, os que se
afundam, os que se sustêm, os que se
prometem em oração, a adega, o frio,
o medo, o horror, a dor, a sofreguidão,
a seara madura, o cortiço das abelhas,
a que guarda um grande segredo
sob este tecto de estrelas e luar,
a que lá vem, o que lá vem. Quem
bateu à tua porta? Uma rameira,
um viajante, uma ave nocturna,
o perigo, o golpe, a ferida, a imagem
de qualquer coisa inominada, a que
não existe neste mundo de seres e
coisas, os sacrifícios, o idílio,
a metáfora, os maiores murmúrios,
a insolência dos pobres contra as
regras da poesia que se murmura
entre dentes, o teu nome imutável.

 
Ignoremos a morte que vem mansa e com voz melíflua
utilizando as palavras mais cínicas à sua branda voz de
comando estes pobres mortais aí estarão de joelhos
implorando perdão por tudo o que não foi feito pela
revolta calada da imensa maioria nós nada sabemos da
vergonha e da traição estamos atentos ao que nos rodeia
a multidão distraída correndo como quem persegue
e vê fugir um destino e sem nada saber de especial

Friday, January 12, 2007

 
Foi em certa curva do bosque que o vinho toldara completamente
a visão do mundo do Engº. Ferreira de Magalhães.
Dera-lhe para longuíssimas deambulações literárias. Paciência,
leitor. Um sorriso apenas, dizia, é o limite moral do nosso
esforço e é inútil o disfarce. Nem vale a pena tentar, bem vi
quanto é necessário para dissipar o medo. A tua moral, meu
velho, sei bem o que significa. É a moral de todos: que se
fodam os problemas alheios. Não tentes convencer-me da tua
inocência. Outros já o fizeram sem resultado. Mas tu...
Descobriste a urgência do tempo, ou será porque todos
morremos sempre cedo? Dizias isto em criança com uma grande
tranquilidade, pois a distância era ainda um enorme espaço lá
mais para o fim. Mas agora? Onde está a tendência para o
humor? Estás sério, grave, como um homem que já não
acredita em nada do que se diz e que desejaria esquecer a ponto
de já não se lembrar que tinha esquecido.
"Põe um anúncio", é a solução. Escreve assim: "Engº. Ferreira
de Magalhães, perdido no bosque, filósofo desempregado,
perora sobre a enorme chateza da existência humana, está
lúcido como um bêbado qualquer, não obriga ninguém a
escutá-lo, quem avisa é amigo".
E pronto, "aviso é aviso, anúncio é anúncio". Iremos recuperar
lentamente a nossa identidade. Muito lentamente. Deita
fora a pressa, isso foi antes e através do mau olhado. Vá,
gaita, não precisas de ser simpático comigo. É a simpatia
que te perde. Ninguém morre por isso. Deixa-te de merdas,
medricas é o que és. Cagarolas! Enfia as pantufas e o roupão,
aspira o perfume da televisão e toca hinos de louvor à
felicidade. Mas não te queixes. Fazes o que bem te der na
real gana mas lixas-te sozinho, não levas ninguém contigo.
Vais recuperar certamente, nada te choca a não ser essa
enorme distracção entalando-te o rabo à esquina do medo.
Não temas nada, alguém te disse tudo isto muito ternamente
ao longo dos caminhos da floresta. Acordaste bem disposto?
Nem deste conta da enorme carga de insónias a corroerem-me
as entranhas durante a noite. Dormes mal, a culpa é dos
tempos. O conselho de um Engenheiro só pode ser este: não
erres os cálculos. O tinto é um grande amigo. Bebe até que o
pipo fique contente. Outra do nosso ilustre companheiro com
certa sabedoria é a certeza de que nunca se pode salvar
apenas uma parte da floresta quando o incêndio já atingiu
desusadas proporções, é como as vagas do mar em noite
de procela, ai que ele fala tão bem como o Moraes! Mas não
há-de ser nada, as ondas estão calmas e o mercurocromo
não resolve as dores, do que a agricultura necessita é de
sapos vivos e água, muita água, até por causa das barragens,
ai preocupado que eu estou com o consumo exagerado
que por aí vai aquecer tão sóbrios cuzinhos de fofinhas
damas. A tua veia, sem graça nenhuma. Mas não te pedi
opinião nenhuma, fica sabendo. Sei bem desenrascar-me
sozinho, agora vou contar as estrelas no céu, grande ponto
me saiste. Sem jeito nenhum para nada, a não ser. A não ser
nada. Nada. Ninguém ajuda ninguém. Nietztche tinha razão,
achas? Nem sequer sei se tinha, talvez tivesse, mas isso
era quando tu lias livros sérios, agora só lês porcarias.

Tuesday, January 09, 2007

 
o silêncio é ainda e sempre uma grande solução passeias no
vale e esperas apenas o eco da coruja as palavras estão acima
de toda a suspeita com elas construimos palácios e matamos
a solidão das horas com elas amamos a noite e a mais terrível
de todas as evidências: inventámos a morte por decreto em
nome dos mais abjectos absurdos nascer é agora um grande
peso a caminho das encruzilhadas do destino pérfido é o riso
e ignóbil é este rio do esquecimento

Saturday, January 06, 2007

 
Disseste: uma bela tarde, uma bela mulher,
um jardim de abetos, a extravagância,
estamos fodidos com as horas, corremos
o tempo todo, para onde? ninguém
sabe para quê! reprodução, reprodução
da vida quotidiana, as putas que se salvem
no naufrágio se quiserem, recreio,
dissipação da fortuna, amor ardente,
dissipação da saúde, lugar de espinhos:
os fios, os novelos, a teia, as teias,
olhar de cima para baixo e de baixo
para cima, levantar e sacudir as cabeças,
sacudir o jugo, anular o jogo...atento,
venerado e obrigado, meu caro Fernando.

 
dizias: tudo isto vai passar e verás que o pesadelo tem os
limites do esquecimento mas que sabemos nós da memória
colectiva? sabemos bem da indiferença e da melancolia
sabemos de tardes soalheiras com os velhos de olhos
encovados fitando o horizonte à espera das naus abandonadas
sabemos dos mortos em vão dos bombardeamentos de todo
o vasto mundo porque todos morreram inocentes...para quê
rememorar o inenarrável?

Friday, January 05, 2007

 
Invoco as pedras preciosas, o reino mineral,
o basalto, a pedra de toque, para o beijo das
amadas.
Quem falou em desistir? Não vamos esmorecer,
nem perder o ânimo.
Invoco a ociosidade, mãe de todas as necessidades,
a única que nos permite algum consolo.
Temo que tu me acuses de ter faltado ao meu
dever. É uma sábia máxima: o dever acima de
tudo. Está presente o desejo, a saudade,
a vontade de beber mais um bagaço ou
um copo de bom vinho... para que estiveste
ali tanto tempo à espera no jardim?

 
a ignorância é o preço da vergonha nunca ninguém saberá
toda a impostura uns vagos saberes de tragédias antigas o
caos passa ao nosso lado e é certo que todas as lágrimas
do mundo jamais lavarão toda a imundície contemplar esta
ave nocturna que te estilhaça a memória um murmúrio varre
vales e verga as árvores digamos que estas águas são tão
necessárias como as lágrimas mais escondidas e que as
marés avançam desde o princípio indiferentes à cobardia e
ao medo

Thursday, January 04, 2007

 
Alguém disse: o edifício ameaça ruir, os
pilares cederam na frontaria principal, é
necessário subornar os guardas do templo,
expulsar os guardiães da lei, os tabeliões!
a poesia é a única tábua de salvação, ouve o
ruído do vento, um poeta chora comovido,
será que alguma vez choraste secretamente,
talvez durmas a sono solto, examina os teus
livros com atenção, verás que alguns críticos
vão escrever coisas mirabolantes, inventar
mil e uma posições que nunca foram as tuas,
ouve lá, aquela escrita toda quanto tempo
demorou a brilhar? é feita de ouro, bela, rara,
excelente. Estou seguro, não precisas de ser
lisonjeado, entendo é que não devo guardar
segredo, canto para certos surdos, não é
conveniente dar ouvidos a tudo. Somos
dóceis, estamos sempre prontos a aprender.

 
Se esta brisa não te trouxe notícias do vendaval se os mortos
apodrecem nos campos de batalha em nome de valores tão
mesquinhos é porque não há memória que se aguente neste
horroroso massacre de inocentes criaturas nenhuma guerra
sobreviverá na memória do tempo inacreditável horror apenas
um pérfido sorriso nestes dias de mácula e esquecimento a
nossa memória jamais sobreviverá a esta infâmia

Wednesday, January 03, 2007

 
Afonso saiu mais cedo que o costume do seu tugúrio. Aparou
a sua enorme e esbranquiçada barba, levantou os braços
como quem se espreguiça e disse: isto é que está um ano
de grande abundância. Disse: a fruta começa a amadurecer,
as verduras aparecem apetitosas e até mesmo se vêem aqui
e ali apetitosas raparigas em flor. Disse também: não sejas
guloso. Disse ainda: para castigar este corpo maldito nada
como um banho de água fria no rio. E foi nessa direcção que
se sumiu.
A velha Felismina continuava na dela: umas rezas e benzeduras
resolveriam o problema do Afonso. Mas como obrigá-lo se o
espírito que o anima dá mostras da maior das fraquezas e
misérias jamais observadas sobre a terra. Só se pode curar um
doente desde que se possa obter a sua colaboração. O que
não é o caso. Ora vejam: fora daqui, gritava o Afonso, absoluta-
mente fora de si, fora daqui, já disse. Nada a fazer, pois. Foi
então que com a mais espantosa voz jamais ouvida na
floresta, o Afonso me chamou e disse: não digas a ninguém
que eu existo. E sem qualquer explicação obrigou-me a aceitar
uma carta para a posteridade que rezava assim:

"Amigos,
Bem sei que a hora não é propícia a grandes cometimentos.
Mas eu julgo-me tão predestinado como o voo da coruja
apesar da terrível conspiração de silêncio à minha volta.
Nenhuma das minhas ambições se realizou. As árvores na
floresta passam uma sede tremenda e da minha goela nem
falar posso. A sede é ancestral e tudo o que mais desejo na
terra é que os poços não sequem e os rios não parem de
correr.
Tudo o que ainda queria dizer-vos é que estamos rodeados
de gente sacripanta que morre de amores por tudo o que
é safadeza e maldade e cuja hipocrisia ultrapassa qualquer
hipótese de cura milagrosa. Nada a fazer, eis a sábia
conclusão deste vosso humilde criado. Humilde no trajo
e no entendimento, já se vê.
Na minha opinião tudo tem um fim e o fim de tudo só pode
ser um, o amor acima de todas as coisas, amem-se então
uns sobre os outros."
Assim dizia a carta entergue pelo Afonso, com o pedido
não respeitado de que o deixassem em paz. Veio uma
ambulância e levou-o. Neste momento não se sabe
ainda qual o destino do Afonso: um hospital, uma prisão?

Tuesday, January 02, 2007

 
Abusai da mordacidade e da maledicência,
sereis justamente recompensados escapando
a esta vida penosa, miserável, infeliz. Que
nem sequer se deite fora o bagulho das uvas:
o nosso Fernando adora bagaços. E era nesse
indefenível estádio já com alguns ardores a
inundarem-lhe o cérebro que ditava para a
posteridade as mais célebres cartas de amor,
minha pomba, minha estrela, meu benzinho,
minha coisa fofa, meu bebé fera, quem me
dera puder deitar-me contigo junto à lareira
em noite de ventania, quem me dera puder
deitar este este frágil coração sobre os teus
seios e ouvir assim o som das ondas do mar,
quem me dera a fúria das águas, a espuma
na areia, quem me dera ser um mancebo
amante à beira do rio Fredo, rio da Sicília,
quem me dera o repouso merecido após
tantas horas de combate e desassossego,
consola-me coração, agora que te vejo,
como a alfazema e o alecrim, moreninha
de olhos muito abertos nesta noite só nossa.

Monday, January 01, 2007

 
Só um barco voga neste rio do esquecimento são medonhos
agora os segredos traídos as hostes inimigas dormem
abandonadas a morte espreita a desonra a morte vagueia
na noite a tua irrepetível morte um certo sabor amargo
um travo na boca um momento fugaz e breve quem
deslindará os fios desta meada que nos prende às coisas?
para onde caminhamos?

 
Aniquilai o medo e a desonra, ó santas devotas
do meu tempo, utilizai pregas dos vestidos,
broches santificados e todas as espécies
de árvores por podar. Utilizai em caso de
extrema dificuldade a chave que abre por
dentro e fecha por fora.











 
Cambaleando entre o arvoredo o Eng. Ferreira de Magalhães
falava alto talqualmente o padre no púlpito em dia de festa.
Lembrou-se de uma frase latina e gritou-a aos quatro ventos:
sic transit gloria mundi. Que é feito de um homem? Desde
quando se via assim só e triste e sem ninguém para o ouvir
perorar sobre as grandezas e misérias humanas. Ah, a capital lá
está altaneira e puta, vadia partilhada por sete colinas.
Dizia o Engenheiro: foda-se! Que ninguém me traga notícias
de Lisboa: o povo unido está fodido! É o que vos digo, em boa
hora o digo e faço: quem governa o mundo? Tentou sentar-se
junto a um pinheiro mas a fraqueza das pernas obrigou-o a
ficar de borco rente ao caminho. Nem vivalma. Apenas o barulho
das ramagens respondia ao seu queixume. Foda-se, repetiu.
Desde quando se tem a certeza que um homem está
arrumado? Um zumbido chato inundava-lhe o cérebro e nada
lhe dizia da proximidade da sua cabana. Os pinheiros erguiam-se
à sua frente quais perigosos fantasmas e pensou: agora
é que estou mesmo arrumado. Nem sequer sei de onde
sou nem qual a forma de sair desta escuridão. A memória
varreu-se-lhe de todo quando pensava: nem sequer sei quem
sou. Engenheiro Ferreira de Magalhães, um seu criado!
Disponha agora que eu estou em maré de boa vontade.
Amanhã é tarde. Amanhã será tarde? Amanhã não é tarde
nem cedo. Amanhã não existe. Sou hoje um homem de borco
à beira do caminho. A coruja acaba de me anunciar que a
noite já não é uma criança. Quem sou eu? Quem és tu?
Ou eu sou tu e tu és a Esfinge? Quem se finge aqui no meio
da floresta? Estamos perdidos no vasto horizonte e ninguém
nos poderá jamais ensinar o caminho. Caminha. A estrada é
longa e longínqua é a tua cabana, e o luar não há-de tardar.
Quem nos poderá culpar se não conseguirmos decifrar o
enigma do Eng. Ferreira de Magalhães?
De borco, cansado, com o cérebro a zumbir, assim sentenciou:
fiquem-se com esta, quem governa o mundo é a foda,
ouviram? Quem governa é a foda, ou têem dúvidas?

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