Sunday, June 25, 2006

 
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Para a Alex

O "Eine Kleine Nachtmusik" de Mozart envolve ainda o teu cérebro e a custo te libertas da imagem do amor, regressas aos que mais amas, ainda ontem te vi criança e hoje já me falas de terríveis cataclismos: onde estará agora o teu pombal? Desfeito pelo tempo, arrastado pela tempestade, ainda se nota o teu sorriso juvenil, mas agora é tarde demais, outros partiram antes do tempo e não puderam fugir da mediocridade, descobrirás certamente um refúgio. Ou então deixa chover, talvez ainda te lembres de mim naquelas noites em que a memória te não atraiçoar.

(J.A.R.)

Saturday, June 24, 2006

 
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O que irá ficar de mim é apenas isto, e acima de tudo, a recordação ondulante do teu corpo implorando o orvalho da manhã, dormias como um justo, nem um ténue sinal nos lábios, os olhos fingiam quietude e por dentro habitavas um terrível vulcão de lava incandescente. Tudo se cura quando sobram curandeiros. Não peças piedade, ninguém ta dará, o que deves é exigir esta chuva que veio lavar a cidade e inundar as sarjetas com excrementos de animais bravios. Antes da chuva estavam calmos e nada como a decisão de voar alto.

(J.A.R.)

 
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Esquecemos então a dor daqueles dias e um novo horizonte despontará para sempre. Depende muito do ovo da serpente e de umas quantas mulheres ao redor do fogo. Por mim não temo nada, tão pouco sei se jamais saberei todo o significado das coisas, mas estou disposto a ouvir-te todo o tempo e talvez então possa entender tudo, os mistérios da alma humana são insondáveis, claro que a melhor lã te assenta que nem uma luva, balança-te mais suavemente ou então, se preferes, vou colocar aquela esteira que tanto adoras entre os pinheiros. Ou preferes definitivamente os eucaliptos por causa do cheiro?

(J.A.R.)

 
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Na natureza há as quatro estações e tudo se renova, na vida existe o mistério das células e ainda o brilho dos teus olhos, o importante está agora em ti, saberás dizer se os passos que pisas são os mais seguros, ninguém te poderá ajudar na descoberta do labirinto, creio até que nem custa muito, todos os escravos gostam de se libertar mesmo quando simulam a lucidez possível, o resto é a certeza desta chuva benfazeja na penumbra deste Outono.

(J.A.R.)

 
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Se olhares para o firmamento verás a Cassiopeia, a Ursa Maior, a Ursa menor, a Via Láctea por onde creio que passou Anais Nin montada num cavalo branco. A Via Láctea, certamente.

(J.A.R.)

Wednesday, June 21, 2006

 
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As horas. O horror do tempo. O relógio parado nas horas do tempo. O amor. Descobres que um coração dói muito mais que a picada da serpente junto ao Índico. Inicias um estranho ritual, despes toda a roupa em silêncio, a tua voz em surdina ainda agora falava com entusiasmo e todavia pouco sabe de mim. Um enorme e frágil pássaro agonizando na neve. Uma boneca pintalgada de azul, corais marinhos batendo à sucapa no morro no meio da maior tempestade que os céus trouxeram a estas paragens. O susto dos sapatos perdidos, um western à americana, sabes lá a cor de mister White bêbado que nem um cacho à procura da santíssima trindade.

(J.A.R.)

 
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Admiro a tua leveza e esse ar sem mistério no final do dia, gostas da noite? O melhor é o barulho das luzes na cidade, o vagabundo Ismael mais o seu cão vadio reformado pelo ministério da cultura a gritar aos quatro ventos que "cymbidium vieux rose" é nome de orquídea.

(J.A.R.)

 
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Era o tempo das amendoeiras em flor e a primavera puxava por ti. Vieste com uns olhos doces cor de amêndoa e ficaste especada fitando o firmamento à espera de não sei que tragédia final, sempre tiveste queda para o drama e um certo aspecto teatral continua ainda agora a influenciar os teus modos, só agora te causa nojo essa ideia do êxito, que tudo acabe bem, sem problemas de maior, a tua consciência é o único juiz, se é que desejas mesmo saber tudo sobre os lírios que irrompem nos campos.

(J.A.R.)

 
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Não sei bem qual o cheiro do teu perfume, mas hei-de descobrir precisamente duas ou três coisas a teu respeito, esse filho da mãe do Godard regressa agora às origens.
E da pesca, dir-me-ás como pula o arenque?

(J.A.R.)

 
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Nunca saberás quando tudo começou, creio que era já muito tarde, o sol tinha acabado de se esconder no horizonte e então notaste a placidez dos meus olhos, outros falaram do poder encantatório das minhas mãos, alguém disse mesmo isto, se a memória não me engana: do que gosto mesmo a sério é desse teu ar triste! Esse tipo também não batia bem da bola e foi até num desses percursos que teve a ideia de se estatelar no solo e só teve tempo para dizer ai a minha mãezinha e pronto: assim aconteceu como estava previsto desde sempre.

(J.A.R.)

Monday, June 19, 2006

 
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As mãos envolveram o corpo da amada um pouco desajeitadamente, um destino se cumpre, não durmas agora, faremos amor com o luar da noite, o espelho devolverá a tua imagem com extrema nitidez, irei como um relâmpago perdido na lonjura dos pinhais, brincaremos com os esquilos, deves cuidar de tudo, o amanhecer não tarda, um juiz está acima de qualquer suspeita. Não julgues a solidão.

(J.A.R.)

 
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Pequeninos ribeiros no fundo destas montanhas dirão da sede dos pássaros, eu apenas falarei da extrema violência deste frio para quem não tem lume e fogo para agasalhar os dias destes difíceis tempos.

(J.A.R.)

Wednesday, June 07, 2006

 
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À memória de Ruy Belo e Glauber Rocha

Louca a semente varria o vento na noite. Vento doido como um cavalo ferido na arena. Agosto em chamas na floresta não sei como nem quando: o Glauber partiu para sempre. Uma vez mais um mau presságio na frágil caminhada. Foi frente ao mar que noutro idêntico Agosto soube da dolorosa partida do Ruy. Nem o cheiro do mar secou as lágrimas do silêncio.
"Nada deu certo", disse o Glauber. Milhares de coisas deram certo, claro, quem poderá destruir as imagens da terra e do mar?

(J.A.R.)


 
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As anémonas vergavam as hastes quais oliveiras bravias no cume da montanha. Águias e águias dançando no azul estrelado, um corvo surgiu na curva da estrada e pronto, nem contar saberíamos. Prostitutas vagueando na noite. O Ritz e o seu ritmo alucinante. Steve Pots é nome de jazz, quem querias no templo? Noves fora as tintas, para a merda o papel que não dá para nada, que jeito desajeitado meu filho da mãe, hás-de saber que um banco é um banco e um jardim é um jardim, banco de jardim ainda se fosse, os amigos são ainda, quem saberá da gaivota voando no alto em busca de mim, de ti, de nós?

(J.A.R.)

Tuesday, June 06, 2006

 
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Recolhes lentamente a neve como criança em dia de festa na aldeia perdida na serra. Um corvo debicava a brancura da paisagem mesmo ao lado da ravina. Tanta gente à beira do caminho em lenta procissão, talvez recolhimento, talvez em busca de alimento. Que é feito do pastor e do seu gado? E da mansidão do lobo? Quem te dirá dos longínquos trópicos notícias dos náufragos tão dolorosamente perdidos ao longo dos tempos? Se não acreditares na semente, como poderá o vento espalhar a tempestade que varria ainda há pouco vales e montes?

(J.A.R.)

 
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Durante algumas horas espreitou as serranias onde nada faria prever um tão importante cortejo de oferendas. Todos os fins de tarde lá estavas a contemplar o horizonte. Um dia apuraste todos os sentidos em direcção à torrente de lava incandescente e eis que um cavalo branco emergiu esplendoroso naquele pacato horizonte: trazia notícias da bem-amada. Saberás do mais profundo deste silêncio quantas noites em que apenas o amor dói como o cigarro longamente apetecido e, apesar de mim, agora aqui estás de novo, pura como a água da serra e pronta a saciar toda a sede do universo.

(J.A.R.)

Friday, June 02, 2006

 
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Foi assim que algo de ti ali ficou para sempre. Só mais tarde te libertaste um pouco esquecendo esses dias sem glória, os que não voltavam mais, os que partiram, as despedidas, aí descobriste como são tristes todas as partidas, sempre a lágrima ao canto do olho, a fragilidade do teu corpo, dos teus olhos, de tudo o que te rodeia.

(J.A.R.)

 
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Não sei se vou ficar aqui, um tipo talvez resista a todo este peso, a consciência límpida como um riacho, ainda escrevinhei há uns bons vinte anos, mas perdi tudo, detesto agora até a sensibilidade desta manhã, irás logo para a cama e ficarás como novo, não és o sossego que mereço, todos nos perdemos no corpo do amor, só o amor pode salvar o amor, não há palavras para este homem perdido consigo, manda lixar tudo, senta-te no meio dos amigos, aqui estarás melhor, o coração da mulher que te ama é ainda e sempre um grande refúgio, não julgues inútil esta paz, desejo-a com ardor, esperei todo o tempo por ti e regressas de mãos vazias e já nem sabes descobrir as rosas vermelhas.

(J.A.R.)

Thursday, June 01, 2006

 
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Estás no princípio, iniciação, canto, exorcismo, é isso, haverá palavras para aquela mãe? A que dança nua na noite aparece aos teus olhos com um súbito encantamento, se investires no desejo pouco se perde, sobrará a energia vital, ficas um certo tempo na montanha à espera da aeronave que parte como um pássaro alado, o futebol trouxe notícias do naufrágio? Guma partiu em busca da amada, a memória construída palmo a palmo entre as ramagens em flor.

(J.A.R.)

 
O Difícil Comércio das Palavras..........14

Esperavas palavras bonitas, mas não é isso que te trago, a Virgem estava na azinheira, imaginas a chatice, os pastorinhos com os olhos a brilhar, um raio de luz, uns olhos perdidos na noite, a enorme procissão das velas, os que estavam doentes e foram curar-se, os vivos dançavam a incomodidade, oferecerias também uma vela do teu tamanho, se ele voltar vivo virei de joelhos, o sangue no asfalto, a fé move montanhas, a mulher abandonada na noite, um filho perdido, haverá palavras para consolar os pais? Tinha doze anos, sonhava com o mar, pescador de sonhos, o mau olhado do progresso, partiu para sempre e nem pudeste beijar-lhe a fronte, que mal lhe fizeram, se contares as noites sem dormir não te chegarão os pinheiros da floresta, um café mais, vou ficar acordado todo o tempo, fumas um cigarro encostado à parede e terás todo o tempo do esquecimento, o dedo dói com o esforço da caneta, haverá novos horários para os barcos, ali me quedarei qual Robinson pinga-amor, rasgarei todos os poemas, um século é tempo demais, perder-me-ei em ti, as curvas e o resto, leia livros neste Natal, bem vi os olhos deles, estavam vermelhos?

(J.A.R.)

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